10 perrengues da versão original de ‘Pantanal’ que saíram de cena
Feita em caráter absolutamente experimental, a começar pelo fato de que nenhuma novela havia sido gravada por longa temporada longe da civilização urbana, a primeira versão de “Pantanal”, realizada pela extinta Rede Manchete em 1990, enfrentou perrengues que o remake da Globo já não precisa encarar.
Isso se estende a elenco e equipe técnica, com ênfase para o desprendimento das moças que não se acanham em fazer xixi no meio do mato e do diretor que já não precisa pendurar seus câmeras em aeronaves para fazer imagens hoje abraçadas por drones.
A verdade é que o caráter quase experimental da produção e da extinta Rede Manchete levava muitos profissionais a se submeterem a sacrifícios que não seriam bem digeridos se estivessem na Globo, empresa com maior estrutura e de cofre muito mais gordo, onde não cabe aceitação a condições precárias de trabalho.
Na Manchete, a maioria do elenco se adaptou sem grandes queixas às condições possíveis. Imbuídos do espírito de fazer história com o folhetim, o que se acentuou a partir da conquista de uma audiência até então inédita para a emissora de Adolpho Bloch, acreditavam que valia dar o sangue pela saga dos Leôncios.
Ao convidar atores da novela para tomar um café em sua sala, Adolpho Bloch gabava-se em dizer que na Globo eles certamente não seriam chamados pelo dono, então Roberto Marinho, para ocasião similar.
Além desse contexto que motiva de modo distinto times de Davi e de Golias em qualquer circunstância, há o avanço tecnológico de três décadas, algo imensurável para os efeitos finais.
Diante disso, enumero aqui 10 perrengues que os heróis da versão original encararam há 32 anos, hoje aliviados pela tecnologia e pela melhor estrutura oferecida pela Globo, e isso vai das gravações ao processo de transmissão.
- Benedito Ruy Barbosa conta que uma das resistências da direção da Globo em gravar a novela no Pantanal há mais de 30 anos dizia respeito aos pudores das estrelas da emissora em fazer suas necessidades em qualquer lugar. “Eles diziam: ‘atriz da Globo não mija no mato’, mas pra gravar ‘Pantanal’ tem que mijar no mato, ué!”, argumenta o autor.
Na versão atual, a Globo chegou a levar banheiros químicos para gravações em locações que não econtravam qualquer sinal de habitação por perto, mas o calor dentro das cabines era insuportável, e houve quem tenha preferido segurar o xixi, sob riscos para a saúde. - Em 1990, os atores dormiam em grupos de quatro a seis em um mesmo quarto de fazenda. No remake da Globo, as acomodações valem no máximo para dois profissionais para cada quarto.
- Se o diretor Jayme Monjardim só conseguia cenas panorâmicas a partir de voos de aeronaves, com cinegrafistas pendurados, ou por balões, Rogério Gomes, diretor da nova “Pantanal”, faz uso livre de drones, com grande efeito.
- Há 32 anos, um advento chamado videocassete, que os menores de 20 anos provavelmente não conheceram, era acionado para gravar um programa que não pudesse ser visto em tempo real ou que merecesse ser registrado para ser visto em outra ocasião. Era como um download físico. Deixar algo em processo de gravação antes de sair de casa requeria habilidade para programar as teclas corretas e alguma sorte –se a energia caísse, por exemplo, adeus cópia. Hoje, qualquer acesso a sinal de banda larga e um cadastro gratuito no GloboPlay tornam possível ver a novela em qualquer horário, sem falar nas cópias piratas que pipocam todos os dias no YouTube.
- Em 1990, as câmeras, infinitamente mais pesadas que hoje, massacravam os ombros dos cinegrafistas. Agora, equipamentos carregáveis em uma só mão podem capturar imagens de altíssima definição.
- Feita apenas dois anos após a nova Constituição, “Pantanal” na Manchete ainda experimentava os limites (ou a falta deles) após o fim da Censura Federal. O desfile de banhos de rio com atrizes seminuas fazia parte desse contexto. Hoje, os cuidados com cenas que sensualizam levam em conta a presença de perfis diversos diante da TV e as lindonas não precisam se submeter a tamanha exposição.
- Não demorou para que “Pantanal” incomodasse a Globo, sugando sucessivamente a audiência da linha de shows que a emissora líder exibia após a então novela das oito, “Rainha da Sucata”. Para frear o zapping, a Globo passou a espichar a duração dos capítulos do folhetim de Silvio de Abreu, na tentativa de fazer parte do público desisitir de Juma & cia. A Manchete então passou a contar com espiões dentro da Globo para só colocar “Pantanal” no ar depois que “Rainha da Sucata” acabasse. Quando o fim da “Sucata” se aproximava, o Jornal da Manchete se preparava para o “Boa Noite” final e a troca imediata para “Pantanal”, a fim de não dar brecha para outras opções ao espectador que aguardava pelo enredo rural.
Ainda líder em audiência, e sem concorrência à altura de canais de TV em tempo real, a Globo hoje dispensa estratégias de guerra como as da Manchete. - Jayme Monjardim passou meses procurando as locações ideis para filmar no Pantanal. Já Rogério Gomes, o Papinha, aterrisou diretamente em Aquidauana (MS), em uma das fazendas que foi usada na primeira versão, e ainda contou com os melhores anfitriões desde a primeira visita: após o fim da novela da Manchete, a propriedade foi adquirida por Almir Sater, músico projetado para a fama nacional na versão original e novamente em cena agora. Sater logo avisou Papinha que Monjardim já havia feito aquele trabalho de pesquisa há 32 anos e não havia lugar melhor que aquele para servir de QG para a nova versão. O diretor então adotou a fazenda como referência das seis propriedades usadas para servirem de cenário no remake, sendo poupado de comer mais poeira em busca de outra área.
- Levado ao set por Sérgio Reis, que já estava escalado para a novela, Almir Sater fez tanto sucesso como Trindade, um peão violeiro, que a direção da Manchete encomedou a morte do personagem a Benedito Ruy Barbosa, a fim de transformá-lo no galã da novela seguinte, “A História de Ana Raio e Zé Trovão”. Agora intérprete de Trindade, Gabriel Sater, filho de Almir, não terá esse ônus.
- O elenco do remake contou com aulas de preparação para adquirir sotaque, modos e conhecimento sobre a cultura da região do Pantanal, seu bioma e suas particularidades. Já os atores da versão original começaram a tomar intimidade com o local enquanto gravavam, sendo orientados a aparar arestas por figurantes contratados entre os moradores de lá no decorrer da novela. O autor Benedito Ruy Barbosa conta que foi ele quem ensinou a atriz Cristiana Oliveira a pegar em uma espingarda na primeira cena em que Juma aparece com a arma na mão, durante a gravação da sequência.
O resto é lenda. E quem quiser que conte outra.