Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

2018, o ano em que a realidade superou a ficção

Otávio Müller e Maria Clara Gueiros em esquete que parodia o projeto Escola Sem Partido / Foto: Reprodução

O melhor slogan do ano para a TV foi (e pode continuar sendo) o do “Zorra”: “Tá difícil competir com a realidade, mas o ‘Zorra’ tenta.”

A realidade de 2018 popularizou mais um anglicismo entre nós, as tais das “fake news”. Somando realidade e versões falsas de realidade, de fato, foi difícil encontrar uma novela, uma série, um reality show, um filme ou uma animação que superasse, no repertório de conversa dos brasileiros, a paixão pela discussão política.

Não importa o nível de conhecimento do cidadão. O brasileiro falou de Bolsonaro, de PT, de “Andrade” (Haddad), de Lula, de Temer, de Aécio, de Joesley, de Gilmar, de Marco Aurélio, de Carmen Lúcia, de Moro, como se falasse sobre personagens do futebol ou das novelas, gênero em franca decadência no quesito “paixão nacional”.

Não foi um ano em que as novelas geraram crises para as emissoras, longe disso. Elas ainda são imbatíveis como entretenimento de massa. Mas não se leva de 2018 nenhum personagem capaz de ficar na memória do brasileiro, como ficarão as eleições deste ano e seus bastidores – as brigas de família no whatsapp e Facebook, as defesas passionais de figuras que deveriam ser avaliadas de modo pragmático e a crítica de botequim aos magistrados, de acordo com a torcida do freguês.

De técnicos de futebol a autores de novela, viraram todos comentaristas políticos. A polarização, que já se arrastava nas duas últimas eleições, atingiu níveis nunca antes vistos, e foi bem absorvida pelo humor disposto a fazer pensar. Os talk shows enviesados pelo humor, no entanto, nas figuras de Fábio Porchat e Danilo Gentili, aproveitaram esse cenário muito timidamente, mais por medinho dos respectivos executivos de cada emissora (Record e SBT) do que pelar falta de vontade dos próprios apresentadores em tocar no assunto. O “Greg News”, que se abastece apenas disso, mas não é propriamente um talk show, ainda fica muto fora do alcance popular, mesmo que a HBO disponibilize quase o programa todo no YouTube.

Não é à toa que as séries, como já bem disse o Nilson Xavier, autoridade máxima no assunto teledramaturgia, foram o gênero mais produtivo do ano. “Sob Pressão” (no campo da saúde), “Carcereiros” (da segurança pública), “Um Contra Todos” (do tráfico à política), “Treze Dias Longe do Sol” (da fraude na construção civil) e até “Onde Nascem os Fortes (dos males causados pela omissão do poder público) levantaram questões que foram mais bem abordadas nas linhas da ficção do que nos debates eleitorais – debates esses que perderam temperatura pela ausência do candidato que acabou se elegendo presidente.

Foi um ano às avessas.

O atentado contra Jair Bolsonaro em Juiz de Fora só fez crescer o interesse por esse enredo, e aqui estamos nós, vendo os dois lados a defender seus votos, como se as eleições ainda não tivessem terminado.

Feitas em doses de temporadas e em número bem menor de episódios, as séries ganham condições de abordar assuntos que já soam arriscados para as novelas. Mas, ainda sobre o folhetim, é latente a falta de coragem e tutano para criar histórias com potencial de virar conversa do dia seguinte, como acontece mais uma vez, 30 anos depois, com “Vale Tudo” (Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères) no Canal Viva.

No próprio Viva, faltou confiança para manter “Bebê a Bordo” no ar, como aconteceu com todas as reprises de novelas até aqui. Se a audiência numérica não foi lá essas coisas, a repercussão entre os fãs do gênero notou ali uma profusão de diálogos politicamente incorretos na sua melhor forma: a da liberdade de pensar e falar, sem beirar qualquer irresponsabilidade social. Pena que tenham atropelado um bom exemplo de criação.

No mais, todo cuidado é pouco para não sucumbir à gritaria das redes sociais, das igrejas e militâncias de toda ordem. Às vezes me sinto na “Vida de Brian”, filme de Monthy Pyton, naquela cena em que um homem é apedrejado só por dizer o nome “Jeová”. Nunca foi tão caro propor ao público um pouco de reflexão sobre as cenas a nossa volta e os executivos em geral (mas na TV ainda mais, pelo nível de exposição da vitrine) nunca foram tão suscetíveis a robôs cibernéticos.

Curta nossa página no Facebook e siga-nos no Twitter

Cristina Padiglione

Cristina Padiglione