2020 revelado pelas lentes da TV: o ano que…
Se 1968 foi o ano que não acabou, 2020 foi o ano que não começou. Acho que alguém já disse isso, mas ficamos com a certeza de que se o ano começa só depois do Carnaval, nosso pós-Carnaval foi um anticlímax que nem a Paixão de Cristo alcançaria. Vamos tentar traçar um roteiro, não necessariamente cronológico, sobre o calendário que agora se encerra.
2020 foi ano que:
- As novelas pararam, e a interrupção das gravações, algo inédito desde os anos 1960, foi o termômetro que deu a real dimensão do que estava acontecendo a quem tomou contato com o mundo real após a consolidação desse cenário, como aconteceu com os BBBs, que encontraram um mundo totalmente diferente quando deixaram a casa.
- A indústria do audiovisual teve de se reinventar, como todas as outras, mas com a vantagem de que o público confinado em casa queria informação, diversão e, se possível, alguma arte. Vieram as lives, os noticiários, os filmes, as séries, os shows, tudo em abundância, mas não necessariamente patrocinadores dispostos a bancar tanta notícia, já que a pandemia esvaziou o bolso de muita gente e o consumo, de modo geral, desmoronou.
- Lançada em março, a CNN Brasil desafiou a GloboNews a sair de sua zona de conforto e fez o canal se movimentar. Nada como uma boa concorrência.
- O governo brasileiro minou de vez o belo mecanismo que fazia a roda da Ancine girar. O nível de volume de aprovação de séries, animações, documentários e produções audiovisuais de modo geral desceu a patamares mínimos, o que começará a fazer efeito do meio de 2021 para a frente, já que o prazo de produção para cinema e TV pede de dois a três anos para um projeto sair do papel e chegar à tela.
- Aprendemos a fazer TV por videoconferência. Veio “Diário de Um Confinado”, “Sinta-se em Casa”, “Cada um no Seu Quadrado” e outras ideias. O Papo de Segunda, o Saia Justa, o Greg News, o Altas Horas, o Que História É Essa, Porchat e o Roda Viva se remodelaram, e quem soube trabalhar via Zoom se deu bem.
- Por falar em Porchat, o Porta dos Fundos, de novo, sugou todas as oportunidades para criar freneticamente, com destaque para o nobre Peçanha, caricatura de policial encarnado por Antonio Tabet, e para Rafael Infante no Plantananã, ambos filmados na vertical, em formato pronto para celular e vídeos no Instagram.
- Rita Lobo trabalhou intensamente para contemplar os estreantes na cozinha.
- Fábio Porchat e Teresa Cristina se desdobraram em mil conversas úteis para acalmar os ânimos dos quarentenados em trocentas lives.
- O Discovery Home & Health aprendeu a fazer competição culinária por videoconferência
- A Globo lançou série dirigida por videoconferência, no caso, “Amor e Sorte”, com quatro episódios filmados apenas entre familiares que já estavam juntos na quarentena. “Gilda e Lúcia”, com as Fernandas Montenegro e Torres, rendeu até spin-off.
- Há quatro anos ocupando o fim de noite da Globo na vaga de Jô Soares, Pedro Bial teve o seu melhor ano, com entrevistados e entrevistador bem mais à vontade, sem contato presencial e sem plateia física, com repertório impulsionado pelos 70 anos da TV.
- Em ano em que o Brasil pela primeira vez esteve entre os finalistas ao Oscar de documentário, com “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, tivemos um avanço louvável no formato, e vale aí citar “Em Nome de Deus”, da equipe de Bial, e “Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil, ambos no GLoboPlay, com espaços se multiplicando entre as plataformas de streaming, o que valorizou os terrenos que já se abriam para o gênero, como os canais Curta!, Brasil, Arte1 e GloboNews.
- Na Netflix, “AmarElo”, de Emicida, corroborou um ano de avanços recordes na luta contra o racismo. O assunto ganhou fôlego em outros programas, como “Falas Negras”, na Globo, e o programa Trace Trends, que se estende na TV paga a um canal inteiro voltado à valorização da cultura afro.
- A TV que se mostrou tão dinâmica para driblar as dificuldades, no entanto, não se empenhou na realização dos debates pré-eleitorais em 1º turno, com exceção da Band e da TV Cultura.
- Há 60 anos no ar, Silvio Santos nunca ficou tanto tempo fora da tela, bem no ano em que completou 90 anos.
- Perdemos dona Nicette Bruno, Flávio Migliaccio, Eduardo Galvão, Rodrigo Rodrigues e Tom Veiga, o Louro José.
- Ana Maria Braga abriu o ano anunciando que enfrentaria o tratamento contra um câncer agressivo. E fecha o ano como exemplo de resistência e resiliência, as duas palavras que tanto exigiram de nós neste calendário.
- A Globo emagreceu como nunca se viu desde 1970, quando consolidou seu voo rumo à hegemonia de audiência. Abriu mão de grandes estrelas mantidas por mais de 40 anos sob exclusividade, inclusive de nomes ainda muito produtivos, como Aguinaldo Silva, Miguel Falabella e Antonio Fagundes, além de Tarcísio Meira e Glória Menezes, um patrimônio da casa, Renato Aragão, Vera Fischer, Zeca Camargo e outros.
- Disposta a pagar milhões pela exclusividade de eventos esportivos até bem pouco tempo atrás, a Globo se livrou da Fórmula 1 e da Libertadores, demonstrando ainda não topar uma Copa do Mundo à base do custe o que custar. Os tempos mudaram drasticamente.
- Os bastidores da TV foram abalados por um terremoto no humor da Globo, seara onde algumas atrizes que ainda não se se apresentara nominalmente em público, em um grupo puxado por Dani Calabresa, que tampouco fala sobre o assunto de forma direta, acusam o ex-diretor Marcius Melhem de assédio moral e sexual. Dispensado pela Globo em agosto, ele nega, inclusive tendo provocado a chegada do assunto à esfera jurídica, a fim de se defender.
- A Globo anunciou novas diretrizes no alto comando do grupo, tendo juntado sob o mesmo organograma os canais pagos e o aberto, que têm compartilhado programas em alta frequência.
- No SBT, a presidência do grupo foi assumida pela caçula de Silvio Santos, Renata Abravanel, em sucessão a Guilherme Stoliar, primo dela e sobrinho de Silvio Santos, que acompanha a trajetória da emissora desde a sua fundação.
Minhas honras à grande realização do ano:
- De tudo o que se fez em 2020, a melhor produção audiovisual brasileira são os dois episódios de “Sob Pressão: Plantão Covid”, com a montagem de um hospital de campanha cenográfico que conduziu o espectador para aquele ambiente, com histórias muito próximas da vida real. A produção, feita sob todas as restrições impostas pela pandemia, transformou em entretenimento um serviço de utilidade pública, com Marjorie Estiano se superando de modo exemplar. Ao emocionar a plateia, os episódios ganharam mais eficiência que os noticiários na árdua missão de informar um público atordoado pela falta de conhecimento sobre um novo vírus, drama mundial que no Brasil foi bastante agravado pelo discurso negacionista de quem deveria liderar a nação.
E que venha 2021.