‘2º Sol’ peca no eixo central: Beto Falcão circula muito à vontade para quem está morto
Pergunta crucial movimentou o Twitter durante o capítulo que abriu a nova fase de “Segundo Sol”, nova novela da Globo, de João Emanuel Carneiro, na noite desta quinta-feira: como é que um garoto que desde sempre entende ser filho de um cantor famoso, morto antes do seu nascimento, é criado por este mesmo cantor, sob outra identidade, sem notar que se trata do mesmo rosto? E não é que ele não tenha tido acesso a imagens do pai, dito Beto Falcão, rebatizado como Miguel. Ao contrário, o garoto tem farto acesso a vídeos e fotos do pai biológico.
Desde quando dreadlocks, recurso ostentado pelo famoso cantor e depois dispensado para dar novo lay out a Beto, passou a ser um disfarce imbatível? Veja, ninguém aqui está a cobrar lógica digna de vida real, é evidente que não. Antes de mais nada, isso é novela. De todo modo, a lógica, e não a realidade, é item essencial para fazer o público embarcar numa história. Até Harry Potter, para fazer magia e voar em vassouras, precisa ser fiel a todo um contexto de regras e justificativas onde todas as peças se encaixam.
Esse é um ponto fraco no enredo da vez, mas não é qualquer ponto fraco: diz respeito ao argumento central da trama.
Beto Falcão, agora Miguel, inicialmente confinado numa ilha quase deserta, já circula livremente pelo bar do pai, compra lancha e interage com as outras pessoas, tudo na mesma cidade onde fez fama como vivo e depois, como morto. Ninguém vê no seu rosto o mesmo rosto do “morto”, tendo ele a mesmíssima expressão e circulando na mesma família do defunto?
Vamos dizer que Valentim, ainda inocente (mas longe de enfiar sorvete na testa) não tenha notado a semelhança entre o “pai de criação” e o pai biológico. Mas a cunhada, adulta, personagem de Roberta Rodrigues, também não se dá conta de que Miguel é Beto. Assim, não há ficção que se sustente.
“Segundo Sol” tem mais qualidades que defeitos. Os diálogos são muito bons, infinitamente superiores aos da trama anterior, “O Outro Lado do Paraíso”. O argumento de um cantor famoso, embora decadente, que morre precocemente, de mentirinha, e acaba por se aproveitar do faturamento gerado pela comoção nacional em torno de sua falsa partida, é ótimo – mas não suporta a fragilidade aqui apontada.
Some a isso toda a alegoria do axé baiano, o mais autêntico suingue da cor, com a qualidade nata da música feita na terra de Dorival Caymmi, gente bonita, talentosa, coisa e tal, e tem-se um excelente produto, infelizmente comprometido pela falha do mocinho morto que circula à vontade entre os vivos.
As vinhetas que abrem e fecham cada bloco são altamente eficientes, com arranjo que chama o espectador para a frente da TV.
Outro aspecto a ser valorizado é a dualidade do mocinho. Nesses tempos em que as novelas têm perdido o pudor de exibirem maniqueísmo, isso é uma bênção. O próprio João Emanuel foi muito mal compreendido pela dualidade genial desfilada em “A Regra do Jogo” e “A Favorita”. Nesse contexto, um contraste, por mínimo que seja, no herói da história, é muito bem-vindo.
Beto foi inicialmente contra a farsa que o mantém morto, mas, ao cabo dos 18 anos que separam a primeira da segunda fase, reencontramos um sujeito sem função alguma, à toa, que toma cerveja o dia todo e vive dos rendimentos da imagem imaculada por sua falsa morte precoce. Logo no primeiro capítulo da nova fase, essa vagabundagem é ressaltada pelo pai, Seu Dodô (José de Abreu), e pelo filho (que, repetindo, não sabe que é filho dele), Valentim (Danilo Mesquita).
A dualidade também se faz presente em Cacau (Fabíula Nascimento), por ter fraquejado diante da missão de cuidar dos dois filhos da irmã foragida, Luzia (Giovanna Antonelli), e de desfazer, na cabeça dos sobrinhos, a falsa percepção de que a irmã foi responsável pela morte do marido. Você, da poltrona, se pergunta: como é que ela não limpou a barra da irmã para suas crianças? Falou uma ou duas vezes que Luzia esclareceria tudo, mas não foi persuasiva o bastante para tirar essa imagem da cabeça de Ícaro (agora Chay Suede) e Manu (agora vivida por Luíza Arraes).
O capítulo que abriu a nova etapa nos apresentou ainda um ótimo personagem para grandes reflexões. É Agenor, na pele de Roberto Bonfim, um sujeito que, infelizmente, existe aos borbotões por aí. Queixa-se de ser “mandado” por uma mulher no restaurante onde trabalha e atribui todos os problemas domésticos à submissa esposa, a quem destrata sem dó nem piedade. E antes que muitos Agenores da vida real se vejam devidamente espelhados naquele cara, sem enxergar em suas atitudes qualquer monstruosidade, a filha Rosa (Letícia Colín ressurge cada vez melhor) acusa todas as suas falhas – para o constrangimento dos Agenores reais e os aplausos de suas parceiras.
O baianês tem sido mais bem pronunciado por uns do que por outros, com Emílio Dantas, nosso dúbio herói, e Fabíula Nascimento encabeçando a competência nesse quesito. Letícia Colín e Chay Suede também vão muito bem no acento perfeito. Não por acaso, o sotaque dela foi um dos pontos altos dos comentários sobre a nova fase no Twitter, enquanto ele ficou por 5 horas na lista dos Trending Topics mundiais.
A audiência respondeu bem à nova etapa: 35 pontos na Grande São Paulo, mesmo patamar do dia de estreia, e 38 no Rio (com 56% de participação entre os ligados), recorde naquela praça.
“Segundo Sol” promete ser uma boa novela e tem elementos de sobra para tanto. Só não pode, em nome do dinamismo, atropelar alguns recursos que seriam essenciais para fazer a plateia embarcar no seu conto. Para quem está morto, esse Beto Falcão anda muito acessível à luz do dia.