Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Longe do lugar comum, ‘Onde Nascem os Fortes’ tira espectador da zona de conforto

Maria (Alice Wegmann) no 1º capítulo de 'Onde Nascem os Fortes'

Já disponível no Globo Play, o primeiro capítulo de “Onde Nascem os Fortes”, nova produção dramatúrgica da Globo para a faixa das 23h, endossa que estamos de fato mais diante de uma série do que de uma novela. Disso não resta dúvida. Embora ali estejam prenunciados alguns elementos do melodrama, como os próprios autores, George Moura e Sérgio Goldberg, adiantaram ao TelePadi, toda a montagem do capítulo, dos diálogos aos ângulos de câmera, foge muito do lugar comum e leva o espectador a pensar. Aí pode haver um problema.

É que a estreia, assim como os capítulos de todas as segundas-feiras, virá logo após um novelão cujo sucesso se apoia em situações caricatas, explicitadas por um texto que subestima a plateia pensante, com uma overdose de flashbacks para explicar cada conflito, e hipnotiza quem gosta de ligar a TV para não ter de pensar em nada, nem mesmo na trama que está na tela. Nesse sentido, convém advertir: saltar de “O Outro Lado do Paraíso” para “Onde Nascem os Fortes” pode ser um choque.

É esperado que uma série ou novela exibida após as 23h se esmere mais no conteúdo e na imagem. A essa altura, a plateia acordada diante da TV é menor e mais nichada, o que permite à emissora abrir mão daqueles recursos para abraçar a grande audiência englobada pelo tal gosto médio que assiste à TV até 22h ou 22h30. É quando a curva do índice de pessoas presentes na frente da tela começa a descer. Ainda assim, a atual novela das 21h abusa do didatismo sob a justificativa de se fazer entender por todos, e a produção das onze que vem aí também se mostra ousada para além da cartilha de licenças permitidas pelo horário. São duas produções localizadas uma ao extremo oposto da outra, coisa de dar um nó na cabeça do sujeito que emenda um programa no outro. Se estivéssemos no campo da comédia, o que não é o caso, é como se víssemos um filme do Monte Python imediatamente depois de assistir ao “Vai que Cola”, do Multishow.

Temos aí um primeiro capítulo sem qualquer pressa de apresentar seus personagens centrais ou de alinhavar um ao outro com diálogos quase legendados, como fazem as novelas. O espectador há de esperar 4 minutos e meio até ouvir a primeira fala. Até ali, são 50 segundos de uma abertura ao ritmo do sertão, sob o som da calmaria e serenidade de Tom Veloso em “Todo Homem”, e uma viagem por uma trilha de ciclismo vista pelo olhar do ciclista (ou “da” ciclista, como só saberemos quase aos 2 minutos, quando ela tomba no chão). Quem está diante da tela tomba junto: uma câmera do tipo Gopro acoplada ao capacete da atleta acompanha a trilha, seus solavancos e a queda, o que faz com que os olhos da personagem sejam também os do espectador.

Mais adiante, no mesmo primeiro capítulo, teremos sensação similar, algo como o efeito provocado por óculos de realidade virtual, quando Débora Bloch sai para correr em meio ao sertão, à noite, com um farol instalado na testa. O espectador terá a percepção de “filmar” a atriz do alto de sua cabeça, acompanhando de cima o movimento de seus passos.

“Onde Nascem os Fortes” é enxuta. Dispensa verborragia e tecido adiposo, o que só contribui para a concentração do espectador sobre o que realmente importa na história. Paradoxalmente, é justamente esse o efeito perseguido, e muitas vezes não alcançado, por roteiristas que seguem pelo caminho contrário, afogando-se em notas de rodapé e monólogos em voz alta. Aqui, não. A essência se esgota em ações e diálogos.

As cenas que apresentam Pedro Gouveia, personagem de Alexandre Nero, por exemplo, são autoexplicativas. Não carece que alguém apareça em outro canto da tela ou em narrações em off para ressaltar seus contrastes (e aí vamos lembrar que esse defeito não é exclusividade de novelas, reféns do ritmo industrial, mas também de séries feitas sob a chancela da super Netflix). É dessa dramaturgia, de uma carpintaria que dispensa recursos fáceis, que estamos falando em “Onde Nascem os Fortes”.

Há uma sequência que explicita de modo detalhado todos os contrastes vestidos por Pedro Gouveia. Ele é apresentado como o cioso dono de uma gigantesca fábrica de bentonita, e ninguém, em um primeiro instante, precisa saber para que serve a bentonita, para entender que o cara é a tradução do poder local. Em um instante, ele se atraca com uma funcionária que o acompanha. É a amante, Joana (Maeve Jinkings), com quem transa em pleno expediente. A caminho de casa, ele cruza com a mulher titular, Rosinete (Débora Bloch), que passou o dia dedicada aos cuidados com a filha, Aurora (Lara Tremouroux), vítima de Lupus, como vemos em comovente cena de banho que mostra a menina toda manchada. Ao chegar em casa, finalmente, Pedro Gouveia presenteia a menina com um belo acordeão, beija os filhos com amor sincero, janta sozinho, e quase chegamos a ter piedade dessa condição que o faz solitário, enquanto a mulher corre, a filha descansa e o filho sai para a balada. Uma câmera no fundo de um corredor o focaliza na mesa da copa, em plano nada habitual para a dramaturgia de TV. É o diretor, José Luiz Villamarim, tirando o espectador da sua zona de conforto, sem incomodá-lo. Ao posicionar seu ângulo de modo diferente do usual, o diretor faz a plateia anestesiada pela passividade se mexer no sofá.

Maeve Jinkings, Alexandre Nero e Marco Pigossi na cena que vale como ponto de partida da trama

Quando o homem já parecia a caminho da cama, lá vai ele para o centrinho fervido de Sertão, em visita surpresa, sendo reverenciado por todos os bajuladores e prestadores de conta do local. Logo alcança ao balcão de bar onde o mulherengo jovenzinho Nonato (Marco Pigossi), que a essa altura já conhecemos de outras confusões), flerta com Joana, a amante. “Acho que você está no meu lugar”, diz Gouveia. Convenhamos que é um modo muito elegante de avisar ao rapaz que ele está na hora errada no lugar errado. Ela, a princípio encantada com o ciúme do par clandestino, alimenta a rivalidade. Nonato, imaturo e disposto a bancar o instinto animal do macho, não se dá por vencido. E veremos que não se dará até o fim – senão dele, o que ainda não se sabe, do 1º capítulo.

Em meio a tudo isso, uma breve sequência nos faz respirar e parar para sorrir. Viva a Shakira do Sertão, brilhantemente travestida por Jesuíta Barbosa (e só é possível identificá-lo porque já sabemos que é ele quem está por trás daquela caracterização: é impossível reconhecê-lo a “olho nu”). É Shakira quem diverte o inferninho na agitada noite de Sertão. O danado do Jesuíta não se apoia no playback, longe disso, engata os covers de própria voz, cantando hits como “Como uma Deusa” (famoso na voz de Rosana, nos anos 80), e “Eu Te Amo” (de Sidney Magal).

Ainda que estejamos diante de uma obra que notadamente foge da redundância e didatismo, convém registrar deste início duas frases que prometem acompanhar os 52 capítulos a seguir.

“Aqui não é que nem cidade grande, fedelho, que você vem, faz o que bem entende e fica por isso mesmo. Aqui tem ordem. Tem os que mandam e os que obedecem” – Padro Gouveia (Alexandre Nero) a Nonato (Marco Pigossi).

“Todos os dias são do caçador” – Dr. Ramiro, o juiz (Fábio Assunção), respondendo ao ditado “Um dia é da Caça, o outro, do caçador”.

Fábio Assunção em cena de ‘Onde Nascem os Fortes’

 

Na TV, “Onde Nascem os Fortes” estreia nesta segunda, dia 26, e vai ao ar às segundas (22h30), terças, quintas e sextas (23h30), na Globo.

 

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