Ao anunciar fim de ‘House of Cards’, Netflix finge que Kevin Spacey nunca existiu
A Netflix anunciou as primeiras imagens da 6ª e última temporada de “House of Cards”, nesta segunda-feira, 11, sem mencionar o nome do protagonista, Kevin Spacey, que era também um dos produtores executivos da série. O texto informa que a novidade chega à sua plataforma no final do ano e enumera, com orgulho, as várias indicações e prêmios faturados, sem qualquer menção ao ator, responsável, inclusive, por vários desses méritos.
Quanto piores forem os “pecados” do intérprete de Frank Underwook, pior é a imagem que a Netflix alcança com essa omissão.
Quem trabalha dentro de uma indústria específica, no caso, do entretenimento, conhece bem os comportamentos mais explícitos de seus profissionais. E pelas denúncias que se seguiram à do ator Anthony Rapp, de “Star Track”, o primeiro a acusar Spacey de assédio sexual, é improvável que ninguém, dentro da Netflix ou dos maiores estúdios de Hollywood, não tivesse a mais remota ideia sobre o modo de agir do ator.
É certo que, tornado público um comportamento que só quem circula pelos bastidores conhece (mas até ali finge desconhecer, em nome do astro maior e da importância de seus créditos para o produto), não é possível mais manter o sujeito em cena. A punição é necessária para a revisão que se busca de um novo tempo de condutas. Mas, fingir que ele nunca existiu, sendo ele o protagonista daquela história, inclusive tendo sido parte essencial da subida de Clare Underwood (Robin Whright) ao topo da Casa Branca, já é hipocrisia.
Após a denúncia de Rapp, Spacey foi acusado pelo ator mexicano Roberto Cavazos de se sentir “livre para tocar qualquer homem desde que ele tivesse menos de 30 anos”, e que episódios de assédio eram comuns no tempo em que Spacey foi diretor artístico do teatro londrino Old Vic. O cineasta Tony Montana endossou, contando que Spacey quis levá-lo para a cama e tocou em sua virilha. Houve ainda o caso de um ex-barman e, pasme, de oito membros do staff de “House of Cards” que já haviam presenciado tentativas de assédio do astro.
É certo que ninguém o denunciou antes, por medo de represálias e perda de emprego, mas, quanto mais o sujeito se sente poderoso para seguir uma prática de assédio sem ser rejeitado, em razão de sua alta posição, menor é a chance de ninguém do topo da firma, no caso, a Netflix, desconhecer completamente o fato.
É bem diferente, por exemplo, do caso de um José Mayer, que recebeu uma denúncia de assédio e, depois disso, uma breve insinuação de uma atriz com quem contracenou (Letícia Sabatella), e mais nada. Conversei com várias pessoas sobre esse episódio e elas desconheciam tal comportamento como prática habitual do ator. Não significa que ele não tenha errado, mas, no caso dele, é bem possível que a cúpula da Globo também desconhecesse qualquer hábito similar.
Já outras figuras, bastante conhecidas por práticas semelhantes nos bastidores da TV brasileira, certamente só serão punidas quando e se alguém tomar coragem para denunciar suas histórias de assédio, e há quem as colecione em profusão, no silêncio temeroso por represálias. Mas, uma vez vindos à tona, esses episódios não poderão ser tratados como se fossem surpresa para os empregadores desses personagens. Fica parecendo presidente da República, que nunca sabia de nada.
De mais a mais, fosse para ignorar a obra de seres humanos que apresentaram má conduta na vida pessoal, teríamos de jogar fora todos os quadros de Caravaggio, os romances dos machistas e misóginos (sobraria alguém do século 19?) e filósofos que se tornaram referência de pensamento, mesmo comungando dessas práticas ou de outros males, como homofobia e racismo.
Não é possível enterrar a imagem de Underwood nem fingir que ele nunca existiu naquele espaço ou que ninguém conhecia seu modus operandi com rapazes de seu interesse.
Esperamos que a Netflix dê ao desfecho do personagem um tratamento digno de quem pisou feio na bola, mas não hipócrita a ponto de achar que ninguém nunca soube de nada nesse sentido. Abaixo, o comunicado que acompanha as duas primeiras imagens da 6ª e última safra:
“Ganhadora do Globo de Ouro e indicada ao Emmy, Robin Wright retorna como a Presidente dos Estados Unidos na sexta e última temporada da premiada série House of Cards
As indicadas ao Prêmio da Academia, Diane Lane e Greg Kinnear, se juntam a Wright nesta temporada com o indicado ao Emmy, Michael Kelly; Jayne Atkinson; indicada ao Prêmio da Academia, Patricia Clarkson; indicada ao Emmy, Constance Zimmer; Derek Cecil; Campbell Scott e Boris McGiver, nesta sexta e final temporada. Os produtores executivos de House of Cards são Melissa James Gibson, Frank Pugliese, Robin Wright, David Fincher, Joshua Donen, Dana Brunetti, Eric Roth, Michael Dobbs e Andrew Davies. A série foi criada por Beau Willimon e produzida por Donen/Fincher/Roth, com o MRC estúdio para Netflix.
Em 2013, House of Cards se tornou a primeira série online original a receber grandes indicações do Primetime Emmy Awards. A série recebeu 53 indicações ao Emmy até hoje, com sete vitórias – incluindo o primeiro Emmy para um serviço de streaming com a vitória de David Fincher como “Melhor Direção para Série Dramática”. House of Cards recebeu seis indicações ao Globo de Ouro e teve duas vitórias. A série histórica recebeu 11 indicações ao Screen Actors Guild com duas vitórias; um prêmio AFI; quatro indicações ao Writers Guild Award, com uma vitória; duas indicações ao BAFTA; quatro indicações ao Producers Guild Award; duas indicações ao Directors Guild Award; um prêmio Peabody, entre outras honras.
teve a ver com isso.”
E então? Onde está Wally? Aliás, onde está o Frank nesse apanhado de conquistas? Francamente, só o próprio Underwood seria tão cruel a ponto de esconder os aliados do passado que passaram a representar uma ameaça à sua imagem…
Sabe-se que o personagem será morto, mas, dadas as circunstâncias em que exercia o poder, será inverossímil que não se torne pelo menos um fantasma de influência no enredo. Abaixo, o primeiro teaser da série: