Aguinaldo Silva lembra como Giulia Gam libertou as mocinhas em ‘Fera Ferida’
Mocinha de novela sofre e sofre muito. Daí o sucesso das vilãs, sempre mais livres para amar, matar e, claro, morrer no final. Normalmente, os heróis dos folhetins têm de duas a três opções de par ao longo de uma trama, mas, às heroínas, quase sempre o conflito só pode se restringir entre dois homens.
Felizmente, essa composição clássica é jogo cada vez mais raro nas novelas da Globo – Record e SBT seguem ainda a linha mais conservadora. Em breve conversa promovida após a apresentação de “Os Vilões de Shakespeare”, na Casa de Artes Aguinaldo Silva, com Marcelo Serrado, o autor, dono do teatro, falou sobre o sucesso dos malvados e da habilidade em não fazer dos bons aqueles chatos que muitas vezes a virtude retrata.
Ao falar sobre os atributos que tanto atraem a atenção do público para os vilões, sempre com risco de ofuscar as qualidades dos mocinhos, Aguinaldo lembrou de um dilema que tomou conta de Linda Inês, personagem de Giulia Gam em “Fera Ferida”, ainda em 1993. “Ela estava voltando para aquela pequena cidade após um período em São Paulo, não fazia sentido mantê-la virgem, mas lembro que isso foi uma longa discussão na Globo: a mocinha não podia não ser virgem. E depois de muita discussão, conseguimos fazer com que ela já não fosse virgem”.
Parece surreal, quase tanto quando as histórias fantásticas narradas pelo autor, que uma questão como essa seja debatida atualmente, mas ainda são muito raros os casos que retratam moças bacanas com senso de liberdade sexual nas novelas. Na atual novela das nove, temos três personagens femininas muito fortes defendendo suas trajetórias com a profissão mais antiga do mundo – no caso, Laureta (Adriana Esteves), a cafetã, Rosa (Letícia Colín) e Carola (Débora Secco), cujo passado como prostituta é segredo guardado a sete chaves.
A boa cidadã da trama é Luzia (Giovanna Antonelli), que embora venda uma imagem muito modernosa, após 18 anos na Islândia, tem seus conflitos centrados em outros pontos, mas não entre dois homens. No entanto, não há desequilíbrio com a situação retratada por seu grande amor, Beto Falcão (Emílio Dantas), que vive um casamento de mentirinha e dispensa outra mulher como alvo. Nesse caso, em “Segundo Sol”, o foco do herói e da heroína dispensa triângulos amorosos.
Em “O Outro Lado do Paraíso”, de Walcyr Carrasco, a coisa já era mais clássica, no pior sentido: Clara (Bianca Bin) parecia que só encontraria a felicidade se tivesse um homem para chamar de seu. Foi disputada por três – Renato (Rafael Cardoso), Gael (Sérgio Guizé) e Patrick (Tiago Fragoso), mas quase foi morta por um, apanhou do outro e sofreu pelo terceiro.
Mas, voltando ao foco do debate suscitado pelos “Vilões de Shakespeare”, é inegável que os malvados despertem mais o público do que os bonzinhos. Nelson Rodrigues citava Dostoievski para defender o valor embutido na maldade de seus personagens, lembrando que Raskólnikov (“Crime e Castigo”) mata para que nós não matemos. Por essa teoria, o crime cometido em cena fictícia exorciza em nós, público, aquele desejo que todos guardamos (ou não) de cometer uma grande maldade com quem nos incomoda (e se isso fosse uma narração em áudio, caberia aqui aquela gargalhada que só os demônios conseguem fazer ecoar, hahahaha).
Aguinaldo concorda com esse diagnóstico e fala com conhecimento de causa. Pela sua pena passaram Nazaré (Renata Sorrah em “Senhora do Destino”), Altiva (Eva Wilma em “A Indomada”), e Odete Roitman e Maria de Fátima Acioli (Beatriz Segall e Glória Pires em “Vale Tudo”, algumas das mais icônicas malvadas preferidas da massa que comparece diante da TV para ver novela todos os dias.