Que saudade dos debates políticos com menos regras e mais microfones
A quem interessa uma arena livre para debater ideias com adversários? Aos políticos desprovidos de repertório e oratória é que não é.
Desde a abertura política que permitiu à televisão realizar debates eleitorais por aqui, profissionais a quem nos habituamos chamar de “marqueteiros” logo descobriram como poupar seus clientes de exposição que pudesse prejudicá-los nesses programas. Os homens das estratégias passaram a condicionar a participação deles ali a uma série de regras. As exigências vão desde não permitir que o microfone do adversário fique aberto enquanto o outro fala, até vetar que as câmeras mostrem a reação de um no momento em que outro se manifesta.
No princípio de tudo, os candidatos também eram muito mais desobedientes às poucas regras então vigentes e a claque de convidados seguia na mesma linha. Marília Gabriela cansou de dizer a frase “eu pediria que a plateia não se manifeste”, em vão. “Por favor, gente!”, insistia ela.
Leonel Brizola interrompia Paulo Maluf, Fernando Henrique ou Lula; Mário Covas tinha embates deliciosos com Maluf. Ninguém ficava sem uma agressão que fosse, mas não havia um que levasse desaforo para a casa. Tudo era respondido à altura, com conhecimento sobre o assunto e não frases ensaiadas para agradar ao eleitor e evitar cair em desgraça. Em geral, independentemente da honestidade e da competência de cada postulante ao cargo em questão, tínhamos um confronto de ideias, com mais argumentação do que retórica, e o espectador/eleitor saía ganhando.
Nada disso vale para os formatos atuais, que promovem encontros muitas vezes patéticos, longe do humor provocado pelos debates de antigamente, quando a gente ria, mas conseguia conhecer um pouco de cada um.
Com o passar dos anos, os marqueteiros passaram a decretar que eleitor não gosta de agressividade – daí o “Lulinha Paz & Amor” estabelecido por Duda Mendonça em 2002, daí a valorização que adversários procuram fazer hoje de qualquer frase fora da curva politicamente correta dita por Jair Bolsonaro ou Ciro Gomes. Repare que até Guilherme Boulos tenta honrar seus princípios socialistas denunciando as mazelas da desigualdade social, mas sem jamais perder a ternura, com sorriso permanente no rosto.
O fato é que tudo ficou muito chato, a ponto de o espectador já não ver nos debates um programa de TV com atrativos à altura mínima de qualquer show – nem que fosse um show de ideias, o que efetivamente o formato atual não promove.
Além de tudo o que já foi dito e visto, o primeiro debate deste pleito, pela Band, incentivou de alguma forma a ausência de algumas das peças mais importantes do jogo, em detrimento de outras, menos importantes. Vimos mais o tal Cabo Daciolo, que eu nem conhecia, e Álvaro Dias, do que Ciro Gomes ou Marina Silva, muito mais bem posicionados nas pesquisas, ou Henrique Meirelles, que, mesmo mal posicionado, é figura de relevância na discussão do cenário econômico atual.
Nas redes sociais, o fato de Ciro ter aparecido pouco foi atribuído ao receio dos adversários em confrontar seu discurso argumentativo. A retórica venceu a argumentação, o que tampouco favorece a denominação de “debate” aqui proposta. Ao mesmo tempo em que os políticos que têm mais a dizer lamentam perder espaço para nanicos impostos naquele espaço pela lei eleitoral, eles mesmos acabam por dar preferência ao diálogo com quem tem menos a dizer, em vez de enfrentar adversários competitivos.
O jornalista Ferreira Netto fez o primeiro debate eleitoral de que se tem notícia na TV brasileira, ainda em 1982, pela TVS (hoje SBT) na disputa entre Franco Montoro (PMDB) e Reynaldo de Barros (PDS) pelo governo de São Paulo. Sempre subserviente aos governantes, zeloso que é da concessão recebida de João Figueiredo, Silvio Santos celebrou a liderança de audiência da ocasião e entrou no estúdio pouco antes do fim do debate. Surpreso com a repercussão, confessou que ficou receoso por ter autorizado o programa.
Outros tempos. Veio 1989, quando o próprio Silvio Santos chegou a se candidatar, tendo depois o processo impugnado pela Justiça eleitoral. E veio o segundo turno, com Collor X Lula e aquela edição que afetaria a história e credibilidade da Globo pelo resto da vida. Só muito recentemente, primeiro por uma série que celebrou os 35 anos do “Jornal Nacional”, e depois sob o pretexto humorístico do “Tá no Ar”, a emissora conseguiu abordar o episódio pela própria tela, em tom de mea culpa ou piada.
Apesar da tensão de 89, o humor e a espontaneidade ainda sobreviveriam em futuros debates.
Em 1994, quando Fernando Henrique Cardoso defendia o Plano Real como algo que “vinha de longe”, sem pecha eleitoreira, Brizola aproveitou uma vírgula de pausa na fala do então candidato do PSDB para intervir: “vem, sim, vem da Argentina”, disse o gaúcho, arrancando risos da plateia. Lá vinha a Gabi para dizer, de novo: “eu pediria à plateia que não se manifeste”.
Pois digo que estou sentindo falta justamente das plateias de claque que se manifestam, dos candidatos que defendem ou acusam com argumentos e não retóricas vazias, dos microfones abertos que permitem intervenções como a de Brizola. Os próprios candidatos, todos tratados à cartilha de Nutela e arrumadinhos nos seus engessamentos marqueteiros, mal sabem valorizar a oratória de um Covas, de um Maluf, de um Brizola ou de um Lula. Alguns até sabem, mas são inibidos pelas regras do maldito marketing.
Se tem uma única coisa que melhorou dos anos 80 e 90 para cá foi o fato de podermos assistir a toda a patetice dos debates atuais com a tela do Twitter à nossa frente. Mais ágeis que a maioria dos candidatos em cena, internautas produzem dez memes por segundo, piadas e chacotas que só nos fazem torcer por debates mais próximos dos reality shows e mais distantes do chatíssimo horário eleitoral.
Em tempo: o debate na Band obteve 6,2 pontos, ante 5 registrados no mesmo primeiro encontro entre aspirantes do Palácio do Planalto em 2014. E bateu recorde em visualizações de live pelo YouTube no Brasil, com 390 mil views.
É um ótimo resultado para os patamares da Band, mais até que a média geral do “Masterchef”.
Mas seria de bom tom colocar mais “tomperro”, como diria o chef Erick Jaquin, nesse menu eleitoral, sem uso de facas, por favor.
Abaixo, o debate de primeiro turno em 1989.