Adeus, Henrique Martins, nosso Sheik de olhos azuis
Só quem teve a chance de dividir o set com Henrique Martins, ator e diretor que se despediu de cena neste domingo, aos 84 anos, pode testemunhar que ele, a despeito dos olhos tão claros e da certidão de nascimento procedente de Berlim, na Alemanha, era de fato um autêntico Sheik árabe.
Em uma das escalações mais divertidas da nossa teledramaturgia, Henrique Martins, nascido Heinz Schlesinger, foi o Sheik de Agadir, personagem que dava título a uma novela criada pela cubana Glória Magadan para a Globo em 1966.
Sempre empenhado em manter o cenho fechado, resistindo bravamente ao largo sorriso que teimava em lhe rasgar o rosto, o ator e diretor podia ter sua identidade de sheik contestada pelo azul gritante dos olhos. O temperamento austero, no entanto, ou a simples imagem assim vendida, autorizava Henrique a se vestir de árabe para conquistar a belíssima Yoná Magalhães.
Tive o prazer de ser dirigida pelo nosso Sheik de olhos claros no remake de “As Pupilas do Sr. Reitor”, novela adaptada do texto de Julio Dinis, com produção primorosa do SBT, sob direção artística de Nilton Travesso, em 1994. (Sim, para quem não sabe, tive meus dias de atriz, e guardo daquela produção as melhores lembranças de um trabalho bem realizado, com equipe da maior competência).
Henrique era ligeiro e certeiro no expediente. A história remetia ao século retrasado na minúscula Póvoa de Varzim, em Portugal. Sob seu comando, não havia extintor de incêndio ou walkman (não havia celular ainda) vazando em cena nem texto que pudesse comprometer o contexto de época. Seu ritmo era ágil, sem delongas, sem frescura, com absoluta objetividade. Dispensava os devaneios artísticos que muitas vezes acometem diretores mais ególatras que atores – ego de ator, afinal, é algo compreensível, forçado que está à exposição, pela essência do próprio ofício.
Henrique jamais se sobrepôs à importância dos atores que dirigia. Luciana Braga, uma das pupilas do Sr. Reitor (Juca de Oliveira), ao lado de Débora Bloch, adorava destruir a tentativa do diretor de se manter sério. Zombava de seu falso mau humor com refinado deboche, até que ele se desmanchasse em sorrisos, para a diversão de elenco e equipe técnica.
Adorava parecer malvado ao dar apelidos politicamente incorretos aos personagens que circulavam em cena, sem que ninguém se ofendesse por isso. Ao contrário. Seu set era leve e produtivo.
Em 2008, por ocasião de sua demissão do SBT, onde dirigiu 24 novelas, estive com ele e outros diretores, mais produtores do departamento de teledramaturgia da emissora, no apartamento de Jacques Lagoa, outro diretor do núcleo. Sentiam-se todos injustiçados pela fofoca, plantada por um outro diretor da casa na época, junto ao alto escalão da empresa, de que estariam boicotando a novela da primeira-dama, Iris Abravanel.
Magoado com a acusação infundada – “imagina se eu faria boicote justamente à novela da mulher do dono? Por que eu faria isso?”, defendia-se – queria honrar seu nome e os tantos anos de serviços prestados a Silvio Santos.
Em 2010, participou da novela “Ribeirão do Tempo”, na Record. Ouvi, uma vez, de profissionais da emissora, que não tinham coragem de chamá-lo para papéis menores, considerados aquém de seu valor artístico, e por isso acabaram não repetindo a experiência. Em 2012, participou brevemente da versão brasileira de “Carrossel”.
No total, emprestou seus serviços como diretor a 56 novelas e atuou em 53 títulos na TV, desde 1953, com “Os Anjos não Têm Cor”, na Tupi.
Nos últimos anos, cruzei com ele em várias ocasiões, pelas ruas do bairro paulistano de Santa Cecília. Caminhava sempre a passos acelerados, levando o cachorro pela coleira, olhar baixo e nenhuma disposição para ser reconhecido.
Dono de longo currículo prestado com louvor à TV, zelava pelo orgulho de quem resiste em pedir favores a velhos conhecidos, inclusive para voltar a trabalhar. Foi assim que ele foi murchando.
Henrique morreu de falência múltipla de órgãos, pouco depois de ter sido tratado pela quebra de duas costelas, consequência de uma queda, em casa. Havia três semanas que estava internado no Hospital Samaritano, próximo de sua casa, e nesse período, não se permitiu ser visto por ex-colegas de trabalho ou amigos, tendo apenas familiares por perto.
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