Sucessão de tragédias expõe reformas da Globo: a notícia atropela o show
A Globo convocou editores e jornalistas para trabalhar neste sábado, para além da equipe previamente escalada para o plantão. Entradas ao vivo se multiplicaram durante o “É de Casa”, tendo como foco os efeitos das tragédias que consumiram o Rio esta semana: a chuva que matou pelo menos sete pessoas entre a noite de quarta e a madrugada de quinta-feira, ainda deixando moradores em risco e vias obstruídas, e o incêndio que matou dez garotos no Centro de Treinamento do Flamengo, um episódio que gera alta comoção e indignação.
Só na quinta-feira, Dony De Nuccio fez dez entradas ao vivo entre o fim do “Bom Dia Brasil”, último noticiário nacional antes do “Hoje”, apresentado por ele e Sandra Annenberg, e o início propriamente dito da edição do “Hoje”.
A expansão do jornalismo regional matutino, (“Bom Dia São Paulo”, “Bom dia Rio”, etc.) igualmente aposta na valorização de problemas locais para engordar a audiência, e não está descartado que o regional da hora do almoço (“SPTV 1” e similares) siga o mesmo rumo a partir de abril, tomando espaço da programação de rede.
Tudo isso faz parte da certeza sobre um conteúdo que motiva o público não só a não mudar de canal ou de tela, mas, principalmente, capaz de fazer mais gente ligar a TV. Nada, nesses últimos quinze dias, mexe mais com a emoção de um espectador confrontado com uma sucessão de descasos, ainda sob o choque da tragédia da Vale em Brumadinho, onde todo dia o noticiário atualiza o número de mortos.
Em novembro, em uma dança de cadeiras promovida entre os altos comandos da Globo, um chefe do Jornalismo, Mariano Boni, foi “deslocado” para o Entretenimento. Sob o seu guarda-chuva, ficaram, entre outras atrações, os programas de Ana Maria Braga, Fátima Bernardes e o “Bem Estar”, todos ao vivo, pela manhã, quando os assuntos mais urgentes do dia se desenham. Cabe notar como a presença do jornalista tem feito a roda girar para que a notícia atropele, no melhor sentido, o entretenimento.
A presença de Mariano Boni na área tem conspirado muito para que o trânsito da realidade circule em meio ao show. Faz toda a diferença que o chefe desses programas conheça por dentro todas as dificuldades, os profissionais e as demandas da notícia para entender o que é relevante ou não e a frequência das “interrupções” – que podem se transformar na receita principal do programa, a depender da urgência dos fatos do dia.
Na manhã de quinta, no Rio, a Globo mais parecia GloboNews, com cobertura permanente sobre os estragos do temporal da véspera. A audiência dos noticiários cresceu até 4 pontos em relação às últimas semanas.
O incêndio no CT do Flamengo fecha duas semanas essenciais para perceber que a grade da Globo nunca mostrou tanta disposição para interromper qualquer show em nome da notícia, produto que gera audiência orgânica, aquela que vem sem que ninguém precise chamar, sem campanha publicitária ou festas de lançamento, e faz o sujeito parar seu zapping no canal que lhe traz informações sobre o que interessa.
Além disso, não sejamos ingênuos, há o fator da curiosidade e da morbidez humana, inevitavelmente atraída por tragédias. Quantas pessoas, entre as que arrastam a lentidão do trânsito para ver os estragos de uma batida de carros, estão realmente dispostas a parar para ajudar? “As pessoas vão ao autódromo para ver batida de carros, não para ver quem vai vencer”, costuma dizer o tricampeão de Fórmula 1 Nelson Piquet.
Diretor mais longevo no comando da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, já previa, há alguns anos, que no andar da carruagem que coloca nas mãos do público tantas telas e opções de entretenimento para consumir seu tempo, a televisão aberta linear iria garantir sua soberania por meio da programação ao vivo, com jornalismo e eventos como competições esportivas e shows.