Autor revela truques para levar livro à TV: ‘Se eu Fechar os Olhos’
O dramaturgo Ricardo Linhares sempre achou que “Se Eu Fechar os Olhos Agora”, livro de Edney Silvestre, renderia uma minissérie, mas era preciso espichar algumas tramas e inserir novos personagens. Para tanto, pediu que o autor lhe desse tal liberdade.
Edney topou e não se arrependeu.
Lançada no ano passado por venda à la carte no NOW, plataforma de vídeo sob demanda da NET e da Claro, a minissérie chega hoje à TV aberta, logo após a novela das nove, “O Sétimo Guardião”, e vale ser vista.
Dois meninos Paulo (João Gabriel D’Aleluia) e Eduardo (Xande Valois) encontram o corpo de uma mulher, Anita (Thainá Duarte) à beira do rio da cidadezinha fluminense que abriga o enredo, ali pelos anos 1960. A partir do relato dos dois ao delegado (Antonio Grassi), a história vai desvendando os fantasmas que cada um esconde no armário, em uma sucessão de camadas, e ninguém é o que parece ser.
O racismo está nas linhas e entrelinhas, justificando até o enigma do crime. Não por acaso, é Paulo, já na voz de Milton Gonçalves, quem narra toda a história que marcou sua infância. Sob direção de Carlos Manga Jr., o Manguinha, o elenco conta ainda com Murilo Benício, Débora Falabella, Antonio Fagundes, Paulo Rocha, Gabriel Braga Nunes, Mariana Ximenes, Jonas Bloch, Lidi Lisboa, Bernardo Bibancos, Pierre Baiteli e nomes muito raros na tela, como Ruth Souza e Renato Borghi.
A seguir, uma conversa boa com Linhares. Craque em teledramaturgia, ele sabe tecnicamente o que não funciona e o que pode funcionar na hora de traçar suas linhas e seus personagens.
TelePadi – De quem foi a ideia de adaptar o livro do Edney?
Ricarlo Linhares – A ideia da adaptação foi minha. Eu já conhecia o Edney socialmente, mas não éramos próximos. E o Edney me procurou porque ele tinha vários contos, e ele tinha até uma reunião com a Globo para falar disso, que ele queria transformar em um programa de ficção, no estilo do ‘Relatos Selvagens’. Ele me procurou antes da reunião na Globo para saber se eu faria a adaptação desses contos e se ele poderia dizer lá que eu gostaria de fazer essas adaptações.
Eu li, gostei muito, mas falei pra ele que isso não funcionava em televisão. Você não pode fazer em televisão um programa de pequenas histórias, en que cada episódio tenha quatro ou cinco histórias que não se interliguem, que cada bloco seja de uma história diferente. Isso não funciona nem em televisão fechada nem em televisão aberta. Nem o ‘Black Mirror’, que é uma coisa supersofisticada, mesmo assim é uma história por episódio.
Eu falei pra ele que o que eu gostaria de fazer seria uma adaptação de ‘Se eu Fechar os Olhos Agora’, que tem um grande potencial para minissérie. Desde que eu li o livro, gostei bastante. Mas falei que eu gostaria de fazer, desde que eu tivesse liberdade na adaptação, porque o livro não tem folego para dez capítulos.
Edney foi à reunião na Globo, falou isso, a Globo endossou que os contos não tinham a ver, mas disseram: “Se o Ricardo tem interesse em fazer ‘Se eu fechar os olhos’, vamos fazer. E fiz em tempo recorde. Ainda estava na (supervisão de) ‘A Lei do Amor’, comecei a fazer a adaptação e já começaram a gravar. Tudo conspirou positivamente.
Entreguei a sinopse no final do ano e em março já estava sendo gravado, tudo rumou pra ter esse casamento positivo.
A ideia partiu de mim e depois disso eu e o Edney ficamos muito próximos, saíamos pra jatar, trocávamos figurinha o tempo todo. Além de tudo, o projeto me trouxe um grande amigo
TP – Então já podemos esperar por futuros projetos entre os dois?
RL – Tomara. Acho que esse é o caminho da televisão. A gente tem produtos tão bons que podem ser adaptados, como é feito na Inglaterra e nos Estados Unidos, na Alemanha. A gente tem livro à beça, a gente tem obras, eu tenho esse projeto do Jorge Amado (‘Cacau’), a gente tem um manancial na literatura brasileira. O problema, além do financeiro, é a falta de lugares pra isso ser exibido.
TP – Mas agora, veja o caminho tomado por “Se eu Fechar os Olhos…”, a indústria do streaming, de Netflix a GloboPlay, abre uma infinidade de possibilidades…
RL – É bom ter uma grande oferta com qualidade, eu acredito muito em segmentação. Acho que as coisas vão acabar sendo faladas para públicos segmentados. Mas, para isso, precisa ter uma boa oferta, e nesse momento é preciso ter dinheiro para produzir. Vontade e profissionais não faltam. Mas falta o meio e o suporte. Está acontecendo, a Warner, a Globoplay, a FOX, todos estão produzindo, mas precisava ter mais capacidade de produção e mais informação, para o público saber o que está passando e onde.
A gente tem ainda um longo caminho a percorrer.
TP – Mas, de 20 anos para cá, tivemos um avanço, não?
RL – Muito positivo, a gente já começou essa trajetória, mas, infelizmente, o Brasil está nessa crise e isso prejudica o audiovisual brasileiro, é preciso uma seletividade dos projetos, o que acaba diminuindo o número de ofertas.
TP – Você teve retorno das pessoas sobre o período em que “Se eu Fechar os Olhos” esteve disponível só no NOW, à la carte? A série esteve à disposição de uma plateia muito segmentada, de certa forma foi sacrificada para uma experiência nova e custava mais uma assinatura de Netflix ou GloboPlay, mas, de certa forma, foi a primeira vez que você experimentou uma pré-estreia ao alcance de um grande público, e não só de uma meia-dúzia em avant-prèmier, por exemplo.
RL – Foi isso: sementado, mas ao alcance de todos. O interessante é que muita gente foi ao NOW para assistir. Não é exatamente sacrificada, ela foi cobaia, foi a primeira vez que o NOW comprou um produto inédito da TV aberta. Eles pagaram para a Globo pela exclusividade, pelo ineditismo de exibir a série. As outras séries que estão lá já foram vistas ou no Globoplay ou na TV aberta. Essa foi a primeira que o NOW bancou a exclusividade da exibição. Isso foi muito importante. O que eu fiquei chateado é que o NOW não divulgou como deveria divulgar, porque já era uma responsabilidade deles. Achei que a divulgação foi tímida, mas cresceu no boca a boca. Tive excelentes críticas e muita gente falou que ia assistir porque estava curioso para ver que produto era esse. O retorno inicial no NOW foi muito positivo, apesar da timidez na divulgação. Foi uma forma de lançamento que não é ortodoxa e que talvez nem venha mais a acontecer, porque na época ainda não existia essa nova potência que o Globoplay tem hoje.
TP – Você acha que é diferente a experiência de ver à la carte e ver na TV linear?
RL – O fato de a pessoa se dispor a pagar aquele dinheiro para assistir já mostra que há uma predisposição, é uma coisa mais positiva. Quando a gente senta para ver uma série americana, a gente tem esse comprometimento, o público tem um comprometimento, e eu, como público, também tenho, mas quando a gente assiste na TV aberta, a gente fica com uma ligação que não é tão forte com o produto.
Quando a pessoa está assistindo no NOW, ela para o que está fazendo para ver, porque ela pagou e escolheu ver. Não é no meio do jantar.
TP – Você disse que criou vários personagens na série que não estão no livro. Por exemplo?
RL – Eu criei muitas motivações que não existiam no livro. Por exemplo, o Ubiratan, personagem do (Antonio) Fagundes, por tédio mesmo, ele ia na casa do dentista (Renato Borghi) para ver o que estava acontecendo, e a história dele com a freira Maria Rosa (Lidi Lisboa) não existia. Na série, o Ubiratan está ali porque ele precisa fazer uma investigação da vida dele. A mesma história do João Gabriel: ele não era neto da Ruth de Souza, ele não tinha parentesco com a Anitta (Thainá Duarte, a vítima em torno do qual a investigação se desenrola), nada disso havia. Eu criei. A investigação policial não é tão importante, a investigação pessoal passa a ser mais importante. O personagem do Gabriel Braga Nunes tinha uma única cena, ele é apenas citado no livro, e eu criei ele drogado, industrial da época, da elite, querendo se meter na política.
TP – Achei que o Gabriel fugiu bem do que ele tem feito.
RL – Ele gostou muito. A maioria dos atores viveu desafios porque são personagens que fogem do que eles estão acostumados, e vou contando tudo aos poucos, em camadas. A Mariana Ximenes não existe no livro, é uma criação minha. O filho do Gabriel Braga na série também não existia, a ligação do Eduardo com o Xande não tinha. Eu criei bastante coisa para ter folego e interesse para dez episódios. Criei o Pierre Baitelli, repórter, e (ATENÇÃO, CONTÉM SPOILER) e matei ele no primeiro episódio poque é uma maneria dos meninos terem uma ligação pessoal com o crime, porque eles nem sabiam quem era a Anita. A partir do momento que eles são testemunhas do crime do repórter, isso cria um laço fundamental entre eles, que deixa a história muito mais forte.
O livro do Edney é maravilhoso, mas o que tem ali dá um longa-metragem. Pra dez episódios, precisávamos de mais elementos.
TP – A opção pela estética de cinema noir partiu de quem?
RL – É um pensamento coletivo. Não é uma obra levezinha, ela não é pesada, mas a estética noir tem a ver com o livro do Edney, com o meu texto e a direção do Manguinha porque existe um subtexto por trás da atitude de cada personagem. As pessoas escondem o que elas são. As investigações noir sempre te levam a uma reviravolta dos personagens, daí essa referência tão forte ao cinema noir. Nada é explícito, é tudo insinuado, sutil, inclusive a violência. Isso tem muito a ver com o filme noir, não tem excesso de sangue, tudo é mais insinuado do que explorado.
Todo mundo esconde o que é, as pessoas criam máscaras para viver em sociedade, elas reprimem certos sentimentos porque naquela época era assim e isso continua eterno. Eu não faço uma correspondência com temas atuais porque seria empobrecedor, fiz uma grande pesquisa de época, mas os temas explorados no livro continuam muito atuais. Naquela época, as pessoas viviam sob pressão do patriarcado branco, as pessoas não tinham direito de liberdade, as mulheres precisavam lutar para frequentar uma universidade, para poder ter uma profissão ou sair debaixo da asa do pai ou do marido. As mulheres continuam tendo que brigar pelo espaço, mas é óbio que houve um avanço enorme.
O racismo naquela época era mais cruel por ser velado, agora não, mas continua entranhado na sociedade brasileira. Ela permeia toda a história, no livro, e o que você vê no último capítulo não tem no livro: aquela história de vingança fui eu que inventei, senti necessidade de amarrar toda a trama.
Toda a história começa por causa do racismo. A sociedade é racista e não se reconhece.
O grande arco dramático da série, o que interessa, são as pequenas vidas daquelas pessoas. Através disso, a trama policial gera uma expectativa e tensão, e por baixo, dá para explorar o drama humano de cada um.
Leia minha crítica da minissérie, escrita ainda em dezembro passado, bem antes desta entrevista: