Em defesa do negócio, associação lança guia ético para publicidade infantil
Mesmo que a publicidade dirigida a crianças não seja, legalmente falando, “proibida” no Brasil, dado o respeito à liberdade de expressão, que vem antes de tudo, o artigo 227 da Constituição Federal, o Código de Consumidor e o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ) apresentam uma série de obrigações que acabaram por restringir com rigor os recados comerciais relacionados ao público infantil e adolescente, tornando este segmento mais responsável de todos os lados.
Em um reforço do que já vem vigorando há pelo menos dez anos, período que se mede pelo fim de propagandas que usavam o verbo no imperativo para falar com menores (como “não esqueça da minha Caloi”, um clássico do meu tempo), a Abral (Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas) lançou recentemente um manual de conduta para que os anunciantes não deem tiros no pé. Afinal, ninguém quer investir na imagem do produto para depois ter esta mensagem contestada sob algum ponto de vista ético.
O guia é pautado pelos principais pontos do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP), editado pelo Conselho Nacional
de Autorregulamentação Publicitária (Conar), especialmente quanto à publicidade de produtos e serviços destinados a crianças e adolescentes. “A Abral entende que o cumprimento da lei, principalmente da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e
do Estatuto da Criança e do Adolescente, das recomendações do CBAP, sobretudo de seu Artigo 37, garante a comunicação decente, honesta, verdadeira e respeitosa de produtos e serviços comercializados pelos nossos associados, em qualquer plataforma que utilizem”.
A associação ressalta ainda que “a atividade do licenciamento de marcas e personagens, inclusive os infantis, é amplamente respaldada pela legislação brasileira”. “A comunicação de produtos e serviços destinados à criança é legal e está sustentada no País por um arcabouço jurídico composto por 22 normas que regem o tema, mais do que no Reino Unido, com 16 normas, e que nos Estados Unidos, com 15. Para evitar incorrer em publicidade enganosa e abusiva, essa, sim, totalmente coibida pelos mais diversos diplomas legais, é preciso conhecer e praticar a regras aqui abordadas.”
Embora o pessoal da publicidade e da área de licenciamento de produtos esteja cada vez mais consciente e cioso dos cuidados exigidos por associações defensoras do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, uma conquista que muita gente hoje quer rasgar) sobre a publicidade infantil, não se pode tratar como veto ou proibição, no sentido legal, qualquer restrição relacionada a este tema.
No entender do Alana, instituto que zela pelo Eca e move boa parte das ações judiciais que pressionam o mercado anunciante, toda a publicidade dirigida a criança é “abusiva”, visto que os menores não têm maturidade para distinguir conteúdo de propaganda, e muitas vezes, nem os adultos a têm.
Se a garantia à liberdade de expressão não pode impedir qualquer tipo de publicidade, é certo que os tribunais podem retirar uma campanha ou um produto de cena, caso fique comprovada sua má fé ou a infração ao Eca. Sadia e Bauducco sofreram revezes, recentemente, por mandarem recados considerados abusivos às crianças. No caso da Bauducco, a empresa não só teve uma campanha suspensa, como foi cobrada em mais de R$ 350 mil por decisão da 10ª Câmara de Direito Público do TJ/SP, em multa aplicada pelo Procon. Para o colegiado, “a propaganda “Bichinhos dos sonhos” se aproveita da deficiência de julgamento e experiência inerentes às crianças e fomenta o consumo das pelúcias”.
“A gente concorda sobre o não uso do imperativo, a gente defende a publicidade ética e responsável, mas entende como liberdade de expressão, é um direito que o anunciante tem de expor a sua marca”, defende o diretor da Abral. Marco Sabino, em conversa com o TelePadi. “A gente discorda veementemente da apelação, do abuso, que infelizmente ainda existe, e se não existisse, não haveria decisões do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) que suspendem campanhas”, completou.
“O Código de Defesa do Consumidor determina que é abusiva e, portanto, ilegal a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento da criança”, argumenta Isabella Henriques, advogada do Instituto Alana. “Temos tido decisões, inclusive dos tribunais superiores, contrárias a anunciantes, reforçando essa interpretação”, lembra.
Isabella cita o artigo 227, da Constituição Federal, que trata dos direitos da criança e do adolescente de forma prioritária, dizendo que é de responsabilidade da família, do estado e da sociedade, “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
“As crianças são prioridade, nenhum outro ente tem essa prioridade. A Constituição traz essa responsabilidade compartilhada entre família, Estado e sociedade – e sociedade inclui as empresas”, lembra Isabella.
Sabino acredita que a decisão final cabe ao pai ou à mãe, que, até por princípio à boa educação na formação de um filho, não pode atender a todos os pedidos dos herdeiros.
“Temos todo o cuidado em orientar os profissionais que estão fazendo as campanhas sobre o nosso respeito à publicidade ética. O que não dá é pra gente entrar no discurso da proibição, isso não existe, é sério para a liberdade de expressão. Se a gente não puder anunciar, quem vai saber que o produto existe, um pressuposto da livre iniciativa, de empreender? O que não dá é para apelar”, conclui o diretor da Abral.
“Nós não somos contra o licenciamento de produtos, que fique claro”, rebate Isabella. “Não tem problema em vender uma boneca de pelúcia da Minnie. Quando essa publicidade se valer de licenciamento para isso, vai haver um problema, mas a gente não é contra o produto em si”, diz. No caso da Bauducco, os bichinhos eram oferecidos como venda casada ao produto, e esse é o xis da questão.
As restrições a mensagens publicitárias de produtos voltados para crianças têm levado empresas como a Coca-cola a não mais anunciar em canais infantis, por princípio de cuidado com esse público. “A criança não entende o caráter persuasivo de uma mensagem publicitária”, completa Isabella.
O guia lançado recentemente pela Abral reforça os seguintes pontos:
- Criança ou sua representação não vocaliza apelo imperativo de consumo – Expressões como compre, peça, colecione, entre outras, não podem sair da boca de crianças. Ao contrário; a comunicação deve favorecer a moderação, a aceitação espontânea, a reflexão.
- A publicidade deve apresentar cuidados especiais em relação à segurança e às boas maneiras – Sua propaganda deve evitar situações ou diálogos que desencorajem relações harmoniosas entre pais e filhos, amigos, e incentivar atitudes honestas, generosas e com respeito a pessoas, animais e ao meio ambiente.
- A publicidade não pode representar atitudes que proporcionem superioridade pelo uso do item anunciado, ou inferioridade por aqueles que não o usam – Evite uma comunicação que transfira expectativas irreais de popularidade ou sucesso por quem usa e fracasso por quem não usa o produto ou serviço anunciado. (Um parêntese: um antigo comercial da tesourinha da Minnie é sempre mencionado como o que não deve ser feito hoje. A campanha dizia que quem possuía a tal tesoura era superior aos demais por isso. Mensagens como “eu tenho, você não tem” são, igualmente, o exemplo do que não se deve fazer hoje).
- A propaganda não pode mostrar crianças sugerindo explicitamente uso ou consumo – A criança jamais deve ser a portadora da mensagem de consumo. Aliás, essa deve ser sempre dirigida aos pais, nunca às crianças, de forma direta ou indireta. Cuidados com o merchandising, que é muito restrito – Evitar a ação de merchandising ou publicidade indireta contratada que empregue crianças, elementos do universo infantil ou outros artifícios com a deliberada finalidade de captar a atenção desse público específico, em qualquer que seja o veículo utilizado. Além disso, o princípio da identificação publicitária deve ser destacado e o envio de produtos em ações de PR (public relations), mesmo sem remuneração (como ocorre frequentemente por influenciadores digitais que trabalham a divulgação desses produtos em seus canais na internet), considerado merchandising pelo Conar quando não claramente identificado.