Globo investe bilhões em tecnologia para enfrentar a nova concorrência
Antes de apresentar seus novos estúdios a um pequeno grupo de jornalistas, ontem, no complexo dos Estúdios Globo, no Rio, o presidente do Grupo Globo, Jorge Nóbrega, e o diretor-geral da Globo, Carlos Henrique Schroder, falaram longamente sobre os investimentos bilionários da empresa na área de entretenimento. A operação vem atender à demanda de um mercado que hoje transita em todas as telas e conexões.
A Netflix, por mais de uma vez, foi mencionada por ambos como “o concorrente”. Embora tenham enfatizado que a TV aberta continua sendo o grande alicerce do grupo, a engenharia que movimenta seu grande parque de produções, hoje, engloba sinal aberto, sinal pago e streaming (online e sob demanda).
Segundo Nóbrega, nos próximos quatro anos, a emissora irá gastar R$ 4,2 bilhões anuais com a produção de entretenimento e R$ 1,1 bilhão por ano com aquisição de equipamentos e softwares. Os três novos estúdios, planejados ao longo de três anos, custarão R$ 207 milhões no total, abrindo um espaço de 4.500 metros quadrados. A nova área inclui dois fossos cênicos para armazenamento de material, permite a derrubada de paredes para gravar planos-sequência (quando a câmera percorre mais de um cenário sem cortes) e a junção de um deles a um terreno externo que pode servir à montagem de cidades cenográficas.
A área também conta com bloqueio de celulares, impedindo o vazamento de informações. “Os atores adoraram”, garantiu o diretor Ricardo Waddington, atualmente responsável por toda a organização e aproveitamento dos Estúdios Globo, e por isso chamado como “o prefeito do Projac”, apelido do qual riu. O investimento inclui ainda câmeras sem fio e recursos para gravações em 4K e 3D.
Ao relatar o processo de mutação que instigou a demanda por mais produções, Schroder lembrou que seriados como “A Grande Família” e “Tapas e Beijos”, que antes ocupavam a grade do ano todo, cederam lugar a temporadas mais curtas e a um revezamento maior de títulos.
“Ao mesmo tempo que a gente percebia que havia um cansaço do telespectador, a dinâmica e a competição que veio do mercado nos forçou a fazer temporadas mais curtas”, explicou Schroder. “A grade se torna muito mais competitiva, o espectador tem mais opção. Ele pode não gostar de um produto, mas daqui a pouco surge outra coisa e outra coisa. Começamos a fazer 12 ou 13 episódios, hoje temos quatro produtos por faixa no ano todo”, completou.
Nas contas de Schroder, a Globo fechará o ano com mais de 60 títulos, considerando só o entretenimento – além de séries e novelas, há os programas de humor e os reality shows. “Com a entrega do Globoplay, a gente deve chegar a 72 títulos até dezembro.”
“Por isso mais autores, por isso mais espaço para gravação”, reforçou, lembrando que 17 novos autores de teledramaturgia foram lançados de 2014 para cá, com a chegada do dramaturgo Silvio de Abreu ao comando do departamento. Hoje, a Globo tem novelas planejadas até 2023, ganhando mais folga para preparar cada produção e seu elenco, podendo também inverter lugares na fila e nos horários inicialmente projetados. “Verão 90” foi citada como um exemplo disso. Como a novela falava sobre plano Collor no seu início, a Globo evitou que ela fosse ao ar em ano eleitoral que poderia ter Fernando Collor como candidato.
Na prática, a principal vantagem do novo espaço será o fato de as novelas mais complexas passarem a ser gravadas sem mais a necessidade de se montar e desmontar seus diversos cenários diariamente, como acontece desde sempre, até hoje.
Waddington lembrou do passo a passo da Globo desde que as produções eram feitas em apertados estúdios no Jardim Botânico. Até a inauguração do então Projac, o entretenimento da casa foi se espalhando por outros locais, como os estúdios Herbert Richers, a Tycoon e o Teatro Fênix.
Durante todo esse período, o monta e desmonta de cenários nunca foi etapa vencida. Como os ambientes de uma novela não estão disponíveis o tempo todo, é preciso encaixar cenas e elenco de acordo com o que está funcionando a cada dia.
Ao ganhar mais espaço para as novelas, o grupo libera outros estúdios para a produção de séries e programas da linha de shows, passando a abraçar mais títulos do Globoplay e dos canais Globosat.
O Globoplay fechará o ano com seis séries originais lançadas em 2019. Já no caso da programadora de canais pagos, os Estúdios Globo já abrigam hoje as gravações do “Lady Night”, do Multishow, e do recente “Que História É Essa, Porchat?”, do GNT.
Segundo Schroder, a Globo pretende aumentar o intervalo entre a exibição de uma produção no Globoplay e na TV aberta, mostrando ao assinante mais vantagem em pagar por conteúdo exclusivo com antecedência.
COPRODUÇÕES
A aparente autossuficiência em estrutura não elimina a disposição da emissora em fazer parcerias com produtoras independentes, ao contrário. O diretor fez questão de lembrar as boas produções em andamento com produtoras como a O2 Filmes (que atualmente grava a série “Segunda Chamada”, sobre educação), Conspiração (“Sob Pressão”), Gullane (“Carcereiros”) e Maria Farinha (“Aruanas”).
“Na grade, o que tem sido feito tem uma relação muito forte com o mercado. A gente tem uma oferta de fora pra dentro. Não imaginamos nem acabar nem reduzir o espaço das produtoras na Globo. Isso é muito saudável”.
Não foi conversa teórica. Um dos painéis apresentados no palco de um dos novos estúdios, durante um dia inteiro de eventos, foi uma roda de conversa ancorada por Pedro Bial com Andrucha Waddington (Conspiração), Andréa Barata Ribeiro (O2), Caio Gullane (Gullane) e Rodrigo Teixeira (RT Features). Durante o painel, o grupo falou sobre os conflitos criados pelo presidente Jair Bolsonaro com iniciativas da Ancine, a Agência Nacional de Cinema, e a importância de se esclarecer que o audiovisual é uma indústria que traz visibilidade e dinheiro o país, gerando empregos e exportações, sem falar na contribuição à cultura.
Andréa Barata ressaltou que seria importante fazer uma campanha capaz de levar à opinião pública um conhecimento sobre os números do setor, desfazendo mitos como a ideia de que os artistas têm vida fácil e vivem de mamatas. “As pessoas trabalham 12 horas por dia”, ela lembrou, sugerindo que a Globo teria muito a contribuir nesse sentido.
O TAMANHO DA CONTA
Os milhões investidos nesse processo todo não são uma conta simples a ser coberta, mas a direção do grupo confia que o conjunto de receitas a vir de seu fortalecimento como produtora e distribuidora de conteúdo, de assinaturas a publicidade, cobrirá a conta, em um longo prazo.
“Isso está levando a nossa base de custo a subir”, admitiu Jorge Nóbrega, que assumiu a presidência do grupo no ano passado, no lugar de Roberto Irineu Marinho. “A gente pode esperar e a gente vai sacrificar uma parte do nosso resultado operacional nos próximos três anos para financiar esse processo de transformação”, explicou Nóbrega.
Nos últimos dois anos, a Globo só cobriu seus custos graças a aplicações de alto rendimento feitas com o lucro de anos anteriores.
Com grandes investimentos em tecnologia, pesquisas e informações sobre o comportamento de seu público, de um lado, a Globo também tem reduzido drasticamente os gastos com salários e folha de pagamentos, do outro. Contratos milionários e abastados foram perdendo zeros ao longo dos últimos quatro anos, período marcado também pela redução de seu banco de elenco.
Para ajudar a fechar a conta e driblar a crise que tem atingido todos os veículos que vivem de publicidade, fator que tem motivado mudanças constantes na mídia do mundo inteiro, a Globo também admitiu estar em busca de novos modelos de negócios e de alguma “flexibilização” em suas tabelas de preços e regras. Como outros grupos, a empresa da família Marinho tateia a chamada “precificação” promovida pela viralização de seus conteúdos na internet. Hoje, não há cena que se restrinja à exibição na tela da TV. Tudo se multiplica em visualizações por portais de internet e redes sociais. O valor disso ainda é motivo de acerto de contas.
Segundo Schroder, a publicidade feita por atores com base nos seus personagens, durante a apresentação da obra onde circulam tais personagens, continua sendo algo vetado, mas a propaganda feita pelo próprio personagem, quando há espaço e conveniência para tanto, já pode ser realizada. É quase quase a mesma coisa (e aos olhos do público, cá para nós, certamente isso parecerá a mesma coisa). Mas o diretor ressalta que quem anuncia é o personagem, e não o ator, o que faria toda a diferença sob o ponto de vista publicitário.
O exemplo mais latente desse modelo estreou na noite desta quinta, com Vivi Guedes, personagem de Paolla Oliveira na novela “A Dona do Pedaço”, anunciando, no intervalo comercial, um carro da FIAT. O filme foi gravado nos mesmos Estúdios Globo onde o folhetim é feito.
No momento em que tudo muda o tempo todo, vai ser delicado driblar conflitos e tabus para acompanhar o ritmo de tanta competição.
Cabe um P.S.: A viagem ao Rio foi feita a convite da Globo.