Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ponto mais eficiente de ‘Aruanas’, vilão reproduz diálogos idênticos aos do noticiário

Luiz Carlos Vasconcelos é Miguel, o empresário interessado em "regularizar" reservas indígenas e gerar empregos na região do seu garimpo, alguém tão presente nos noticiários atualmente/Reprodução

Quanto maior a maldade do vilão, maior o heroísmo do mocinho.

Muito já foi dito sobre o protagonismo feminino de “Aruanas”, estampado no trio formado por Débora Falabella, Taís Araújo e Leandra Leal. Elas interpretam as corajosas ativistas que movimentam a série de Estela Renner e Marcos Nisti, realizada pela Maria Farinha Filmes para o Globoplay.

Sim, elas são tipo garotas super-poderosas e por menos que pareçam verossímeis, existem de fato e de direito na vida real que nos distancia, muitas vezes, das lutas travadas pelo meio-ambiente dentro do nosso próprio território.

Mas é a ganância de Miguel, magistralmente vivido por Luiz Carlos Vasconcelos, aliada à perversidade de Olga (Camila Pitanga), que faz a série ferver, porque é ele o autor da ação que provoca nas ativistas a função de reação. Não é à toa que a melhor frase da série, usada no trailer, sai da boca dele: “Quem gosta de floresta é índio e celebridade. O povo gosta é de dinheiro, e dinheiro não vai faltar”.

O momento atual é muito feliz para a exibição de “Aruanas”. O discurso de Miguel está na boca de outros personagens, reais, em diálogos vistos pelo Jornal Nacional, com entonação muito similar ao empresário da ficção: “é preciso pensar na produtividade, na geração de empregos para a região”. O que não está na boca deles, nem nos jornais nem na ficção, está nas práticas exibidas nos noticiários e em fotos de satélite: contaminação de rios, desmatamento (a despeito das dúvidas do nosso presidente, Jair Bolsonaro, e de seus discípulos terraplanistas), aquecimento provocado pelo desequilíbrio da fauna e da flora e matança de índios.

Bem neste momento, presenciamos conflitos no Pará envolvendo reservas indígenas e um chefe de nação resistindo a proteger essas áreas ou a acreditar nos relatos de seus habitantes, sob o pretexto de gerar muita riqueza a uns poucos em curto prazo.

Por isso a série é tão atual e alguns diálogos ali são vistos em redes sociais e discursos da vida real, como reação ao contexto certamente mais delicado que já enfrentamos nesse assunto. Fosse há alguns anos, muita coisa ali pareceria aos habitantes do sul-maravilha do Brasil muito mais distante e aqueles diálogos soariam totalmente ficcionais.

O jornal The Washington Post fez uma longa reportagem sobre a série, alertando sobre a importância de a ficção empunhar bandeiras que autoridades tentam negar, sob o mote de que “no Brasil”, séries e novelas “fazem parte da resistência”.

Um ponto fora da curva em “Aruanas” diz respeito, para variar, à profissão do jornalista, mas é preciso que isso seja dito não para zelar pela imagem já deteriorada da profissão, e sim porque seu retrato prejudica o conjunto da obra.

Nataly, a personagem de Débora Falabella, é o típico soldado que vai para a guerra e se coloca na linha de frente na primeira batalha, sem capacete e munição suficiente. E de que valerá um soldado morto, senão para ostentar, quando muito, uma medalha a ser entregue aos seus parentes? A personagem é de uma falta de sutileza que em nada contribui para vencer o conflito. Em dado momento, ela arranca os brincos e joias na frente das câmeras, durante entrevista com Miguel, para dizer que está “deixando de usar ouro agora”, em protesto à exploração de mineradoras como a do empresário entrevistado. Nem um repórter da National Geographic chegaria a tanto.

Jornalistas como Nataly até existem, mas não vão adiante em um veículo como a emissora onde ela trabalha, que resiste bravamente ao seu discurso e cede aos interesses do poder financeiro. Em outros nichos, um jornalista de ONG, que defende uma causa, acaba falando apenas para a sua própria bolha, sem persuadir um ser que seja a mudar de ideia. É de uma militância ineficiente.

Num momento de contestações sobre estudos fundamentados em ciência e tecnologia, estatísticas, imagens reais de satélites ou de indígenas assassinados, é preciso furar a bolha de quem já defende a causa ambiental, e nesse sentido, Nataly não contribui em nada.

Dramaturgicamente, três conflitos que desfilam pelo roteiro dos dez episódios são muito úteis ao desenvolvimento de toda a ação:
1. O contraste entre aquele empresário cruel (Miguel) que dispensa escrúpulos para eliminar seus inimigos e os cuidados com a neta, vítima de paralisia cerebral.
2. O romance de uma das super-poderosas com o marido da amiga.
3. A incompatibilidade entre o trabalho de ativista de Luísa (Leandra) na Amazônia e a convivência com o filho pequeno.

A série também toca na questão do abuso do homem sobre a mulher, de modo muito orgânico à trama central, por meio de uma história da estagiária, (Clara/Thainá Duarte, dona de uma força natural muito rara em cena), que se compadece do aliciamento de menores para o comércio sexual vigente nas regiões de garimpo.

Na tentativa de falar a mais gente para fora da bolha, “Aruanas”, como superprodução que é, com belíssimas captações de imagem e cenas de alto poder de comoção, com um elenco irrepreensível, pode avançar em uma segunda temporada, já em desenvolvimento.

Não é simples fazer com que o público abrace essa causa, e comentei sobre isso em uma conversa com a patrocinadora da série, antes mesmo de ver suas primeiras imagens: falar de Amazônia com os brasileiros sempre é um desafio porque a questão é muito coletiva e as pessoas não compram a briga como se fosse delas, individualmente, o que leva cada cidadão a sempre esperar que outro alguém lute pelo desmatamento e pelo meio-ambiente, mas não ele mesmo. Logo, uma causa que é problema coletivo sofre para ser combatida no plano individual e acaba por não ser vencida.

Falta buscar mais empatia entre as ativistas e o espectador, algo que até aqui fica muito restrito à personagem de Leandra Leal, pela questão do filho. Mas o objetivo maior, que é entreter, está todo ali, em uma produção bem acabada, com conflitos latentes e uma boa dose de ação em um cenário oportunamente fora da curva para a média das séries de TV.

Produtora da série, a Maria Farinha Filmes acumula êxitos como realizadora de documentários e conhece de perto a vida real. A ONG da ficção usa como cenário o próprio escritório da Alana, dedicada a zelar pelo ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, sediado em São Paulo e administrado pela mesa turma da produtora. Boa parte das cenas entre Taís Araújo, Débora Falabella, Leandra Leal e Thainá Duarte é filmada naquele escritório de verdade, igualmente dedicado a lutas sociais, o que vale como um laboratório in loco.

Daí a certeza de que tudo em “Aruanas” é fruto de longos estudos e pesquisas, bebendo na fonte da vida real. O entretenimento está bem servido na séries, mas é torcida de muita gente que a sensibilidade pela luta ambiental possa alcançar o olhar de uma plateia ainda maior. Pesa, para isso, o fato de a série estar disponível em mais de 120 países, por meio da plataforma VIMEO.

 

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Cristina Padiglione

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