‘Hebe’, o filme, traduz a mulher conservadora de cabeça ‘subversiva’
Quem conviveu com Hebe Camargo pode preparar o lenço.
Com estreia marcada para 26 de setembro, o filme “Hebe: A Estrela do Brasil”, com roteiro de Carolina Kotscho e direção de Maurício Farias, é uma viagem no tempo. Não ao tempo da apresentadora, apenas, mas a um tempo que soa ficcional para o contexto atual, em todos os sentidos: político, artístico e humano. E nem faz tanto tempo assim.
Com um recorte dos anos 1980, tomando como ponto de partida sua troca da Bandeirantes pelo SBT, o longa-metragem protagonizado por Andréa Beltrão faz rir e faz chorar. Em cena, está a mulher de fama conservadora e cabeça muito à frente do seu tempo (quase subversiva, diriam alguns), agora retratada nas suas poucas (e perecíveis) fragilidades. Não há lágrima que um copo de whisky ou uma taça de champagne não compense.
Trator de suas convicções, Hebe soube defender a liberdade dos gays, trangêneros e transexuais quando isso não era politicamente correto. O próprio período enfocado no longa-metragem traz à tona aqueles anos em que a Censura oficial do governo militar em tese já não valia mais, mas, na prática, a conversa era outra.
A loira soube gritar pela urgência para sanar o HIV quando muitos ainda tratavam a Aids como doença do demônio (diziam que só puta, viado e drogado pegavam, o que pressupunha um castigo de Deus pela promiscuidade). E embora o filme não entre nesse mérito, Hebe defendeu inclusive a liberalização do aborto publicamente, num tempo em que isso pegava muito mal para uma figura pública.
Na ceia de Natal, no entanto, contrariando os rótulos da polarização atual, Hebe não recebia ninguém da esquerda para jatar, ao contrário. Os amigos à mesa eram o “doutor” Paulo (Maluf) e a Silvia, sua mulher. Quem poderia convencê-la, naquele tempo, que ela tinha de pensar só de um lado da caixinha?
A figura paradoxal enfocada pelo filme, absolutamente verdadeira, é o que infelizmente mais nos distancia do tempo ali retratado. Oxalá a representação da apresentadora, magistralmente vestida por Andréa Beltrão, inspire o púbico a saber que determinadas pautas não são nem da esquerda nem da direita, mas sim do bem estar da humanidade ou simplesmente da sua consciência como cidadão, sem que isso signifique desrespeitar crenças alheias.
Hebe era devota de Nossa Senhora e acreditava num cristianismo que muitas vezes é pouco cristão, como evidenciará uma sequência em que ela homenageia o amigo Carlucho (Ivo Müller), seu cabeleireiro e maquiador, morto em decorrência da Aids.
Gostava de ostentar, mas ficava mal perante possíveis injustiças (às veze cometidas por ela mesma) com seus subalternos, fossem empregados de casa ou funcionários das emissoras de TV focalizadas no filme.
Hebe não caberia nos rótulos de hoje em dia.
O filme revela bem a mulher por trás das câmeras, em casa, capaz de fazer jogo juro com um marido ciumento e às vezes violento. Aliás, convém dizer que Lélio Ravagnani é quase uma interpretação espiritual de Marco Ricca, tamanha a semelhança no modo de celebrar sua loiruda, ao mesmo tempo em que morria de ciúmes dela. Tive a sorte de conhecer o original e saí realmente impressionada da sala de cinema com a representação de Ricca, ainda que os dois nada tenham a ver fisicamente.
Andréa Beltrão como Hebe constrói uma recomposição impressionante e até mais complexa, já que sua personagem, além de ocupar no filme a vaga da protagonista, era amplamente famosa e ainda vive na memória de muita gente que só irá ao cinema para compará-la com a original. A maneira de falar, fruto de aulas e aulas de prosódia e muitas sessões no YouTube vendo vídeos originais, está toda ali. Quando ela diz “eu sou uma pessoa apaxonada”, assim mesmo, engolindo o I, o espectador ouvirá a própria Hebe falando esta palavra.
“Gracinha”, evidentemente, recheia parte do roteiro, mas sem abuso do recurso, que era o mais conhecido de seu bordões.
Não por acaso, o comecinho do filme chega com uma gargalhada da apresentadora, apenas em áudio, e é impossível decifrar se aquele som é uma reprodução da atriz ou obra da Hebe original.
O enredo nos leva a uma certa compaixão por Marcelo (Caio Horowicz), um menino que cresce amparando a mãe dos tombos que os outros tentam lhe dar, mas, sem amigos e sem paciência para aquele ambiente de ricos e famosos engravatados, prefere se jogar na piscina com os empregados da casa, seus melhores amigos.
Há reproduções magistrais, mas a melhor, entre os famosos, é de Felipe Rocha, como Roberto Carlos (você há de se perguntar como nunca notou que ele é tão parecido com o rei, quando jovem). Daniel Boaventura faz um Silvio Santos que encontra mais eco na matriz em função do vozeirão do que do jeito de se comunicar do homem do baú. E Walter Clark (Danilo Grangheia) peca pela distância entre o autêntico e seu cover no quesito sedução.
Stella Miranda também diverte o público como Dercy Gonçalves, assim como Otávio Augusto como Chacrinha.
Se o filme não tem nada de ruim? Tem uma pequena sacanagem o espectador. Aquela personagem que parece ficcional, de tão interessante, não se encerra ali. O longa é um recorte, como já foi dito aqui, de anos 1980. Mas a câmera não a segue após uma briga com Lélio, dando a ideia de que ela teria definitivamente se cansado do ciúmes doentio do marido (quando, na verdade, ela ficou com o empresário até a morte dele).
Daí que você sai do cinema querendo saber como aquela história acaba, se é que acaba, e fica sabendo que a vida completa só será contada em dez capítulos de uma minissérie que traz outras cenas, outras intrigas, gargalhadas e prantos. Mas, quase como as séries que demoram um tempo para se renovarem, a Hebe em capítulos só chegará dentro de alguns meses, na tela da Globo, com o mesmo elenco e equipe.
O jeitinho dengoso, o jeitinho perua, o jeitinho de dizer tudo no diminutivo, sempre praticando ações no aumentativo, está todo ali, devidamente alinhavado em um bom enquadramento, mas sem enquadrar uma personagem cuja amplitude não cabe entre arestas.
Quem a conheceu vai viajar em um tempo que não existe mais.
Quem não teve a chance de compartilhar com ela o sofá da TV refletido no sofá de casa há de achar que é tudo ficção.
Mas Hebinha existiu de verdade e foi bem daquele jeito. Um brinde à loiruda.
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