Com grandes atuações, ‘Éramos Seis’ propõe escapismo sem perda de consciência
Viajar pela Sã Paulo dos anos 1920 é puro escapismo nessa neurose em que a gente se encontra e não só na capital paulista, mas por toda a parte do Brasil atual. Isso, por si só, já vale para ver a nova versão de um clássico: não é à toa que esta é a quinta versão de “Éramos Seis”, pela primeira vez vista na Globo, no espaço da novela das seis desde segunda-feira (30). Não é à toa que esta história, na adaptação de Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho para o romance de Maria José Dupré, foi a melhor produção que o SBT já realizou em dramaturgia, há quase 30 anos.
Mas a nova “Éramos Seis”, com Glória Pires como Lola e Antonio Calloni como Júlio, não é um escapismo que afujenta o espectador de sua consciência ética e moral, ao contrário. Viajamos para longe do hoje lembrando que temos contas a pagar, ética a prestar e algum humor a emanar para tornar a vida menos amarga que Shirley, personagem de Bárbara Reis.
Convém notar como são bem construídas as personas que agora habitam a faixa das 18h e já encantaram quatro gerações anteriores. Já no terceiro capítulo (disponível no Globoplay e no ar logo mais, nesta quarta, 2), ou antes mesmo de chegar até aqui, temos uma protagonista que nos inquieta, de tão conciliadora. Ao se mostrar compreensiva ao extremo, mesmo quando beira a angústia entre quatro paredes, sua complacência flerta com um caráter desumano, de modo que estamos todos torcendo para que Lola bote seus demônios para fora em algum momento, por favor. A despeito da boa interpretação de Glória Pires, vemos ali alguém que não explode, o que torna aquela dona de casa muito fictícia para a realidade de suas semelhantes na vida real. Vamos promover a hashtag #RodaABaianaLola.
Posto isto, vamos aos grandes talentos do elenco, começando pelo sempre surpreendente Eduardo Sterblicht. Vê-lo em cena como o apaixonado Zeca, na pacata Itapetininga, é celebrar um potencial gigantesco de alguém que já foi caricatura ridicularizada de Freddie Mercury em programa de humor (Pânico na TV) e um nerd pouco habilidoso em sedução na série “Shippados”, do Globoplay. Sterblicht parece não ter alma própria, emprestando a integridade de corpo e mente aos personagens que interpreta, como alguém possuído por outro ser. Vê-lo em cena é um espetáculo à parte, e se prepare para vê-lo soltar um Dó de peito digno operístico sem dublê de voz neste terceiro capítulo e em outros a vir.
Para melhorar, sua parceria com Maria Eduarda de Carvalho é de uma sintonia rara. Pode ser que em mais de cem capítulos a seguir as coisas mudem, mas, até aqui, eles são o ponto mais alto de “Éramos Seis”. Atriz de interjeições bem marcadas pela pontuação na voz e nos gestos, com auxílio do sotaque caipira, ela se esparrama em cena e faz jus ao par.
Além do casal, vale destacar com louvor a atuação e o papel de Cássio Gabus, o Afonso, dono da venda que faz contraste com a mulher, a ressentida Shirley. Que figura doce é o Alfredo, e que suavidade o ator lhe empresta, em uma interpretação sem muletas cênicas, sem cacoetes ou figurinos específicos. Viver uma sujeito aparentemente comum e boa praça é desafio bem maior do que dar voz a tresloucados ou desequilibrados. É um prazer ver Cássio, ator de longa trajetória, fazendo sempre os “normais” de modo a distinguir uma performance de outra, sem recorrer a fatores externos: tudo está dentro dele.
Com perdão pelo tom stanislavskiano que essa análise vai tomando, destaca-se ainda o trabalho de Xande Valois, o Carlos criança. Sucesso em outras produções, lembrando a mais recente, a minissérie Se Eu Fechar os Olhos Agora”, o ator endossa o potencial exibido anteriormente. Oxalá o seu destino seja tão longo e promissor como o do último intérprete desse papel, Caio Blat, que viveu Carlos no SBT em 1994.
As crianças sempre aplicam uma dose extraordinária de sedução a qualquer história. “Éramos Seis” parece muito bem resolvida na sua finalização, com uma abertura que remete aos clássicos, apoiada pela trilha sonora de orquestra com cordas em evidência. Vamos ver como o enredo se desenvolve a partir da transformação dos pequenos em adultos, sem perder de vista os conflitos entre os dois irmãos mais velhos.
CHOQUE DE CULTURA
Como toda novela de época, encontramos aqui alguns pontos capazes de chocar o telespectador, dada a distância do enredo dos dias atuais. Nesse aspecto, não é a falta de celulares ou televisão que causa mais espanto, mas sim a dor de ver um pai surrar uma criança com um cinto, em ritmo de chicotadas, só porque acredita que os filhos não estão se entendendo. A tentativa de corrigir uma possível (e aqui equivocada) injustiça com tortura, em vez de buscar o diálogo, é uma sequência chocante, protagonizada no primeiro capítulo, com Seu Júlio e Carlos.
Também espanta ver um médico cobrar 20 mil réis por uma consulta em casa, conclusão de que convênio médico ainda era ficção científica para a época, assim como um doente, convalescendo em úlcera, ir trabalhar no dia seguinte sob a ameaça de ficar sem a sua diária no salário. Em tempos de desilusão com reforma trabalhista e as fragilidades que ela abriu para o trabalhador atual, soa como consolo ver como a roda girava antes das leis trabalhistas implementadas pelo governo de Getúlio Vargas.
O contraste com o passado está em diálogos e gestos muito sutis, que pedem atenção de um espectador nem sempre conectado aos recados dados em cena, tamanho é o escapismo promovido pelos efeitos cênicos da civilidade pouco civilizada dos anos 1920.
Cotação: ÓTIMO.