‘Amor de Mãe’ tem 1º capítulo com conceito de filme e desfecho de série, sem fugir do melodrama
Uma única câmera persegue os muitos passos de Juliano Cazarré por uma caótica via debaixo de viaduto no trajeto percorrido por ele entre o posto onde Magno, seu personagem, trabalha e o ponto de ônibus. Quem mudou de canal nesse momento, sintonizando a Globo, nunca diria que aquilo é uma novela. É o capítulo de estreia de “Amor de Mãe”, novo folhetim das nove da Globo. Episódio de estreia é invariavelmente superior aos cento e tantos que virão a seguir, normalmente melhor até que o último capítulo, porque é este início que há de fisgar (ou não) o telespectador com mais eficiência.
Ainda que muitas pessoas, anestesiadas pelo botão automático, mal tenham se dado conta da genialidade da sequência, o mais desatento dos espectadores perceberá que algo ali lhe parece um bônus em relação ao que a TV está acostumada a entregar diariamente.
Cazarré faz um zigue-zague entre carros parados no engarrafamento, motos que se apressam em ganhar frestas para fugir da lentidão, ambulantes que ocupam a via e as calçadas. Cruza com as duas outras personagens essenciais da trama, a quem o público já foi apresentado e cujos dramas já são conhecidos por nós, mas não por ele, personagem, numa sequência que remete ao “Short Cuts” de Robert Altman ou, para ficar na biografia da mesma dupla de criadores de “Amor de Mãe”, a autora Manuela Dias e o diretor José Luiz Villamarim, à série “Justiça”.
Está dado o DNA. Mas é bom avisar que por mais competência que Villamarim esbanje numa sequência como esta, será impossível manter esse nível de qualidade no dia a dia da indústria que movimenta uma novela das nove, com capítulos longos e seis dias de exibição por semana, o que equivale a fazer algo em torno de quatro longas-metragens, no mínimo, a cada seis dias – isso porque o capítulo de quarta-feira normalmente é metade dos demais.
Haja indústria.
Mas, ainda que não seja possível construir plano sequência sem cortes e fotografia de telona todo dia, o essencial para reter o público antenado naquela história já está ali, no enredo e no elenco de que Villamarim dispõe para botar sua narrativa em cena.
Em tempos que tanto se proclama a palavra “meritocracia” como se todos partíssemos do mesmo ponto de largada na maratona da vida, Lurdes, a heroína de Regina Casé, chega aos lares mais humildes para provocar representatividade e identidade, e aos sofás mais abastados para avisar que não há igualdade nas conquistas quando a igualdade de direitos deu tanto defeito. Clamemos por empatia, termo em falta na vida real do Brasil atual. O discurso de Jéssica Ellen na formatura de História dá a dimensão de quem cria um filho acordando antes de a luz do sol aparecer para só voltar para casa tão mais tarde.
Regina, salve rainha, mãe de misericórdia: o texto de uma das mais belas orações aparece na reza de Lurdes para nos lembrar que Regina significa “rainha” e que aquela é uma figura digna dos versos a seguir. Se o texto de Manu Dias não fosse o primor que é, se a direção de Villamarim não fosse a obra que é, só a presença desta mulher em cena, neste papel, já nos faz ter vontade de voltar a sintonizar o capítulo seguinte, e o outro e mais o outro.
O público foi lançado a dois fios irresistíveis logo de cara: à busca do filho vendido ainda criança pelo ex-marido, ainda no sertão nordestino, quando Luci Alves honra a origem de Lurdes no papel depois assumido por Casé, e à agonia de Magno, bom samaritano que entrou num beco para socorrer uma mulher que gritava por socorro, dos braços de um estuprador. Morto por acidente, o homem é deixado para trás, e enquanto torcemos para que ninguém veja o filho de Lurdes deixando o local, bingo, lá está o celular deixado na cena do “crime”.
Isso por si só bastaria.
Mas temos ainda Adriana Esteves, de novo nos arrebatando com uma interpretação visceral, quando Telma, sua personagem, é informada que tem um aneurisma.
Temos Taís Araújo como Vitória, bom nome para uma advogada, sofrendo pela perda do bebê aos seis meses de gestação, ao ser agredida por uma mãe que perdeu seu filho e de quem ela arrancou qualquer senso de justiça, ao livrar de culpabilidade o réu que ateou fogo no corpo do rapaz. “Você vai ser mãe”, pragueja a mulher, antes de lhe alcançar nos corredores do fórum e de jogá-la ao chão.
Ainda que primeiro capítulo seja sempre algo fora da curva, a estreia de “Amor de Mãe” está entre os melhores primeiros capítulos que já vi, lembrando aí da comoção que me assalta quando me recordo do início de “Renascer” (1993) e “O Rei do Gado” (1996), e da eletricidade que já nos tomou no início de “Avenida Brasil” (2012).
Assim como em “Avenida Brasil”, novela da qual é um dos diretores-gerais, Villamarim aqui não conta com a poesia da estética rural ou de época. Fora a narrativa do sertão, que aparece quando Lurdes se lembra por que e como migrou para o Rio, toda a sua história é contada em meio à aridez do concreto e do caos urbano. Daí a genialidade de autora e do diretor na sequência de abertura da história, em que Lurdes fala diretamente aos olhos do espectador, ali representado apenas pela voz de Taís Araújo durante uma entrevista de emprego, e resume toda a sua trajetória para o público.
A trilha sonora, um item que para Villamarim não entra em cena à toa, complementa essa narrativa em todos os pontos, com Bethania, Caetano, Fábio Júnior e Gonzaguinha, um duplo Gonzaguinha, diga-se, que deu o ar da graça no meio do capítulo e estará diariamente na bela abertura, uma clipagem de cenas maternas em tom documental.
O problema de ter tudo isso em um primeiro capítulo é justamente acostumar mal o público. Eu já quero mais e a gente nem bem começou a história.
Cotação: Excelente ***** (Vale para primeiro capítulo, bem entendido)
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