Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Amor de Mãe’ não joga cenas fora: tudo tem uma razão de ser

Chay Suede e Jéssica Ellen na cena em que eles descobrem a ação de Thelma (Adriana Esteves)/Reprodução

Algumas séries de TV são especialmente boas porque não dispensam cenas, nada é jogado fora. Ao contrário das mesas de café da manhã de ricos em novelas, nada é desperdiçado. Tudo tem uma razão de ser, ou para a história ali contada ou para reflexão de quem assiste àquilo.

Se isso já é raro de se alcançar em uma série, onde a narrativa se condensa em poucos capítulos, imagine em uma novela?

“Amor de Mãe”, a atual novela das nove da Globo, primeiro folhetim solo de Manuela Dias, tem seguido à risca essa premissa, o que só a essa altura é possível enxergar. Até a trama de Miranda (Débora Lamm) e Matias (Milhem Cortaz), que parecia mero enfeite de enredo agora ganha sentido, e era preciso que o público conhecesse a relação do casal antes de dar de cara com o maravilhoso “vale night” que ela vem reivindicando após tomar conhecimento de uma escapada do marido, coisa de oito anos atrás.

A reação de Mathias, um cara muito bacana como já se viu até aqui, transborda todo o machismo impregnado na criação que tivemos, especialmente para quem tem mais de 20 anos. São cacoetes de que a gente mal se dá conta, felizmente cada vez mais evidentes no nosso dia a dia. Muito dessa colaboração vem de filmes, livros, peças teatrais e, principalmente, de novelas, produto de ficção mais consumido do país.

Quando Thelma (Adriana Esteves) acidentalmente espeta a nora, Camila (Jéssica Ellen) com uma agulha, isso há de ser alinhavado lá na frente com a sacada do filho enganado, Danilo (Chay Suede) sobre a gravidez inesperada. E repare como ele sabiamente diz “nós engravidamos”.

Quando uma aluna de Camila passa a faltar à aula porque tem um bebê e você acha que pela enésima vez uma novela vai abordar gravidez na adolescência só para alertar o quanto isso afeta a vida da mãe precoce, vem a proposta de lançar um aplicativo que seja útil na ajuda mútua entre essas mães, em geral abandonadas pelo pai da criança, um tipo que existe aos montes por aí e tem muito a aprender com a conjugação do verbo “engravidar” feita na  primeira pessoa do plural, como faz Danilo.

Quando todo o discurso de Davi Moreti (Vladimir Brichta) parece reincidir sobre alertas ecológicos de sempre na ficção, surge o conflito que evidencia o fogo amigo nas lutas ambientais, um duelo protagonizado por quem propõe soluções para a causa e quem quer apenas protestar, sem apresentar propostas.

Chamam atenção as primeiras conversas entre Raul (Murilo Benício) e o filho Vinicius (Antonio Benício), a quem é oferecida a chance de propor contrapartidas ao estrago que a indústria da qual o pai é sócio, PWA, provoca na Baía de Guanabara. Do mesmo naipe são os embates entre Davi e Amanda (Camila Márdila), que põe a vingança pela morte do pai à frente das prevenções para que outros não morram. Ativista, hacker, bem intencionada, a moça atrapalha anos de trabalho do ativista que busca soluções concretas para o problema. Daí a certeza de o personagem fugir com tanto êxito do clichê que associa militantes ambientais a meros arruaceiros.

A relação de Durval (Enrique Diaz) com a filha, Carol (Duda Batsow), aparentemente bobinha, revela o conflito entre pais que pensam de modo distinto diante de uma adolescente que prioriza a fama de youtuber aos estudos, um deslumbramento muito realista para a era em que vivemos, e quem tem filho nessa idade há de assimilar o recado.

As sequências mais à toa que a novela pode ter são de cenas de sexo, que valem, basicamente, para dar uma apimentada na história e alguma leveza, já que não há muitos momentos de humor na trama.

Isso sem falar em diálogos como aquele da semana passada, em que Camila e Lurdes (Regina Casé) vomitam toda a força cobrada da mulher negra de origem humilde, a quem não é dada a chance de fraquejar. “Tô cansada de ser forte”, ela diz. É uma cena para ficar na vitrine dos mais contundentes diálogos de novela. “A gente não é gente, a gente é sobrevivente”, diz a mãe.

Embora a trama revele que já há representantes de toda uma geração descendente de escravos alcançando algum êxito, a Vitória de Taís Araújo ainda é a exceção da exceção desse quadro no Brasil.

Que bom poder receber uma produção com essa riqueza de cuidados e reflexões no horário nobre da TV aberta. É uma história que provoca o pensamento e cuidadosamente tenta tirar a gente da zona de conforto, sem espantar do sofá. Faz pensar, sem deixar de emocionar, como bem citou Maurício Stycer ainda outro dia.

 

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Cristina Padiglione

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