Sumiço de garoto em ‘Amor de Mãe’ reforça denúncias contra o racismo
Enquanto o irmão mais velho foi rapidamente até o mar, o menino se vê na necessidade de interromper a brincadeira com um amiguinho, na areia, quando um grupo de moleques aterroriza os banhistas com uma ação de arrastão. Na confusão do corre-corre, o garoto, negro, é confundido com os assaltantes e capturado por policiais despreparados que, não tendo feito seu trabalho de prevenção, tentam compensar a falha batendo nos meninos detidos. Não perguntam nem ouvem quem alega inocência. Aliás, ignoram que, mesmo culpado, o agressor não pode ser castigado pelas mãos do agente do Estado, a quem ninguém, e em especial a lei, deu aval para praticar a tortura.
Essa poderia muito bem ter sido uma cena da vida real em uma praia da abastada zona sul carioca. Mas foi um episódio encenado por Pedro Guilherme Rodrigues, o Tiago da novela “Amor de Mãe”, e Humberto Carrão, o Sandro.
Com o caso, a autora Manuela Dias reforça as denúncias de racismo na vitrine de maior alcance do país. São cenas tão corriqueiras do dia a dia, que nós, brancos, mal nos damos conta de seu nível de absurdo, e que os negros, vítimas comuns de situações como esta, já não tratam como surpresa, infelizmente.
Só o amor de mãe que cria negros sabe que sua cartilha de ensinamentos e treinos para a vida no Brasil inclui itens com os quais as mães de brancos jamais tiveram de se preocupar em excesso: sair sempre de casa com documentos, à espera das nada afáveis blitze policiais pelo caminho, e documentos de compra de bens de consumo triviais. Imagine você tendo de carregar na carteira a nota fiscal do seu celular e muitas vezes, até da sua moto ou do seu carro, mesmo tendo os documentos de veículos que comprovam sua posse.
No último capítulo da 1ª temporada da ótima série da O2 Filmes para a HBO, “Pico da Neblina”, exibida em 2019, o protagonista, Biriba (Luís Navarro), confessa que não precisa dos óculos que ostenta desde o primeiro episódio. O adereço só é usado por ele como meio de inibir surras, em especial tomadas de policiais, explicando que o mundo bate menos em pessoas que usam óculos. Para os negros da periferia, eles funcionam também como uma credencial de confiança, um antídoto da imagem de vagabundo.
Em 1994, uma cena da novela “Pátria Minha”, de Gilberto Braga, mostra um carro onde estão dois brancos e um negro, com Fábio Assunção, Cláudia Abreu e Alexandre Moreno. O personagem de Fábio, ao volante, avisa que isso é comum e que eles não serão parados, mas o personagem de Moreno sabe que a presença dele no carro fará os policiais pedirem a revista. Dito e certo. Mais que isso: os agentes são muito gentis com a loira e o rapaz de olhos claros, mas investem em força e pouco tato com o negro, mesmo sob questionamento da moça.
De 94 para cá, aprendemos a admitir que o racismo existe no Brasil e um sistema de cotas no ensino superior foi criado para que se começasse a corrigir distorções seculares. Mas isso não tem sido suficiente para entendermos a perseguição sistemática que os negros sofrem em situações que, a nós, brancos, parecem tão banais.
Oxalá as novelas de grande alcance continuem a martelar sobre o tema. Há muito o que mostrar, há muito o que debater, há muito o que corrigir. Só não vê quem não quer enxergar.