CNN Brasil tem nova chance com Bolsonaro
O mesmo repórter que foi surpreendido por Jair Bolsonaro à porta do Alvorada no domingo (15), ganhou outra chance de questionar o presidente, dessa vez em uma conversa marcada e feita dentro do palácio, com o entrevistado atrás da mesa, devidamente microfonado na lapela. Magalhães, distante de Bolsonaro, nem aparece no vídeo, ou não na edição disponível no site da CNN Brasil, indicando que a equipe do canal compareceu munida de cuidados para não se aproximar de alguém cuja comitiva da última viagem teve 23 infectados pelo Covid-19, mas levou apenas uma câmera para a conversa. O áudio do repórter falhou e houve tentativa de conserto na edição.
Como foi dito aqui por ocasião da estreia da CNN Brasil no dia 15, não me passou pela cabeça culpar o repórter pela falta de questionamento daquele dia inusitado em que Bolsonaro, suspeito de estar infectado, saiu em meio a uma pequena multidão que não deveria estar nas ruas, em prevenção ao vírus. Eram manifestantes que não só foram incentivados pelo chefe da nação, contrariando medidas em vigência no mundo todo, mas também tendo seus celulares tocado pelo presidente para fazer selfie, estando ele na condição em que estava – ou está, não se sabe sobre os exames de covid-19 a não ser por sua versão: nenhum documento foi apresentado.
Ainda que Magalhães tenha sido surpreendido pela presença do presidente naquele dia 15, à noite, os âncoras Monalisa Perrone e Reinaldo Gottino teriam de ter pontuado com mais clareza qual a gravidade daquela situação. Não o fizeram, titubearam, reforçando, na primeira hora da CNN Brasil, a ideia de que o canal é um “projeto político”, como já disse o vice-presidente da Band Paulo Saad.
Na entrevista gravada neste sábado (21), Magalhães fez várias perguntas necessárias, mas deixou outras relevantes de fora, a começar pelo fato de não ter mencionado as manifestações ocorridas ao longo da semana nas janelas de bairros nobres de todo o país. São manifestações vindas das mesmas janelas que batiam panelas contra Dilma Rousseff e que no mínimo votaram contra Fernando Haddad, adversário de Bolsonaro, nas eleições. Ou seja, não se restringe ao público pejorativamente chamado de “mortadela” pelos apoiadores do presidente e que sai às ruas convocado pela esquerda
Essa foi a grande lacuna da entrevista, ainda mais no calor da semana que tivemos. Tampouco Bolsonaro foi questionado sobre a gafe diplomática do filho, Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ) com a China, país ao qual o Número 03 culpou pelo vírus, e o imperdoável endosso de seu chanceler, Ernesto Araújo, que em vez de apagar o incêndio, botou mais combustível no desastre -e olhe que houve chance, quando Bolsonaro elogiou toda a sua equipe de ministros.
Para a sorte, nossa e do repórter, o presidente fala sem pensar e se expõe de modo transparente até nas lives que estão sob seu controle, quanto mais ao responder a perguntas alheias -por isso as evita tanto.
O presidente voltou a chamar o novo coronavírus de “gripezinha”, alegando que é assim que a coisa lhe parece, por ele ter sobrevivido a uma facada, e assim também parecerá para 60% da população brasileira, que nem será atingida pela doença. Presta um desserviço diante de todos os esforços de quarentena, com todos os dados de outros países em mãos.
Refutou o termo “colapso” usado por seu ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, e explicou suas divergências com o mesmo. Chamou João Doria (PSDB-SP) de “lunático” por causa das medidas tomadas pelo governador de São Paulo contra o coronavírus, rebateu o governador do Rio, Wilson Witzel, sobre o veto a pousos de avião, alegando a necessidade de receber insumos, medicamentos e órgãos para transplante.
Witzel não falou em fechar tudo, apenas se queixou da falta de restrições, o que o repórter não replicou.
De toda forma, as respostas ali enfileiradas só denunciam e reforçam o despreparo do chefe da nação diante da crise atual. Bolsonaro diz que alguns governadores, a minoria, tem se aproveitado da situação para subir politicamente sobre ele. Digamos que não é preciso muito esforço para tanto. É só deixar que ele fale.
Ao chamar Doria de “lunático” no momento em que o mundo inteiro age com o rigor do governador de São Paulo, Bolsonaro só incentiva mais protestos à janela. Alegou que o alarmismo pode levar as pessoas à depressão, um diagnóstico que fica em segundo plano no contexto atual, quando não em terceiro, até pelo fato de o covid-19 botar outras pessoas em risco, na dimensão que uma pandemia merece ser tratada.
Reafirmou que seus dois exames deram negativo, embora Magalhães tenha insistido no assunto, mas só fará um terceiro teste se for solicitado. Nesse momento, deu outra resposta que expõe sua incapacidade de entender o que estamos vivendo: alegou que é um assunto do interesse pessoal de cada um. Não é. Sendo infeccioso, o contágio de um interessa ao coletivo, e sendo ele presidente, o contágio é de interesse público. E, reforçando sua ignorância sobre o quadro atual, disse ao repórter que pode-se ver como ele não apresenta “sintomas”. Boa parte das contaminações acontece por meio de pessoas que não desenvolvem os sintomas, mas seria demais pedir que o presidente escutasse alguém ou se informasse devidamente.
Na soma final, o resultado da produção da CNN Brasil é bom e positivo por todo esse conjunto da obra. Mas ainda falta, por mais que a CNN Brasil alegue “respeito” aos seus entrevistados, uma boa dose de contundência no questionamento ao governo atual, na crise em que nos encontramos e diante da maneira como o presidente age.
Quando falamos em entrevistas que sejam incisivas e contundentes sem desrespeitar o entrevistado, vale muito a pena pendurar na parede um quadro com a foto de Ernesto Paglia entrevistando Regina Duarte, uma aula de jornalismo exibida pelo Fantástico há duas semanas, na edição de 8 de março.
Paglia fez não só as perguntas necessárias, mas as ponderações que exibiam as contradições de algumas respostas da atriz. Foi respeitoso, delicado e incisivo, sem deixar uma só questão, um só assunto, passar sem esclarecimento, como um goleiro que não toma frango e com uma saia justa extra: a entrevistada é ex-colega do repórter no Grupo Globo.
Bolsonaro não é Regina. Está longe de ter a tolerância da atriz para responder a perguntas indigestas sem abandonar o microfone, uma covardia explícita do capitão que se arvora de tanta coragem diante do vírus. Nem há Ernestos Paglias brotando em bicas por aí, que aquilo é figura rara. Mas podemos, eu, inclusive, usar essa entrevista como referência do bom jornalismo e, com sorte, chegaremos mais perto de tal performance, desde que haja liberdade editorial disponível para o repórter brilhar.
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