Histórias que curam – Como conhecer storytelling pode ajudar na crise
Diretor e roteirista premiado, além de ex-secretário do Audiovisual, quando ainda tínhamos um Ministério da Cultura, Newton Cannito publica aqui no TelePadi um artigo de sua autoria sobre as epidemias desta era, em consonância com a arte de ouvir e contar histórias, o que está ao alcance de todos, por meio do projeto Histórias para Unir o Brasil.
Divirtam-se.
NEWTON CANNITO
Vivemos duas epidemias simultâneas: a mais urgente e grave, a pandemia do coronavírus, e a mais crônica e persistente, a epidemia de ansiedade, com todos seus milhares de efeitos -como doenças cardíacas, distúrbios alimentares e muitas outras. A primeira se difunde presencialmente, a segunda digitalmente -através de narrativas e histórias irradiadas por seriados, memes de whatsapp, textos para
redes sociais e inúmeras outras plataformas.
Temos que pensar nas duas para alcançar a cura completa. No entanto, vivemos um dilema, temos que passar as informações necessárias para o controle da pandemia. Mas essa comunicação não deve aumentar o surto de ansiedade. O desafio da maioria de nós e dos que podem ficar em home office é mais que evidente: conseguir ficar em casa sem surtar. Receber as informações sem se apavorar. Parece fácil, mas temos visto que não é. A ansiedade pode até mesmo aumentar os números de coronavírus. Basta ver a quantidade de pessoas que foi ao
pronto socorro apenas por um pequeno sintoma inicial, que depois se revelou uma simples gripe. Mas ela, ao ir ao pronto socorro aumentou o seu risco de contágio real.
Ambas as epidemias exigem esforço individual de cada cidadão e, também, um esforço de profissionais especializados. O esforço individual é sair o mínimo de casa e ter consciência coletiva, inclusive para ajudar os que estão impossibilitados de ficar em quarentena, aqueles que ainda têm que sair de casa para trabalhar. Esse esforço individual é motivado por boas informações e boas histórias.
Os profissionais de saúde estão fazendo maravilhosamente seu papel no controle da pandemia. Resta aos profissionais das artes narrativas fazerem o seu, contando boas histórias, que fortaleçam nosso povo. Chegou a hora de quem sabe contar histórias usar esse dom para ajudar o povo brasileiro. Escritores, roteiristas, publicitários, jornalistas, sociólogos, filósofos, atores, atrizes, todo o povo das artes deve ser convocado nesse esforço de reforçar a fé. Muitos colegas escritores estão disponibilizando suas obras para leitura, músicos oferecendo shows grátis e tudo mais. Tudo maravilhoso e fundamental. Mas podemos ir ainda além e ter a coragem de construir narrativas que tenham como objetivo claro reforçar a fé e ajudar a curar a ansiedade.
O interessante é que todos –até mesmo cientistas materialistas- admitem que a fé é fundamental para superar tragédias. E a fé é fortalecida por boas histórias, narrativas bem construídas que ajudem a corrigir comportamentos, a dar sentido à experiência e, até mesmo, ao sofrimento.
Nas aldeias indígenas o xamã acumula duas funções: é o médico que aplica os remédios e é também o contador de histórias. Os povos originários sabem que as histórias também são importantes na cura. A narrativa ajuda até mesmo na cura física (autores como Norman Cousins mostram isso), mas principalmente na cura psicológica – e como sabemos, ambas são interligadas. E contando bem nossas
histórias e entendo o sentido da narrativa que a espécie humana transmuta o sofrimento.
É por tudo isso que o projeto Histórias para Unir o Brasil (www.unirobrasil.com.br) se propõe a ouvir e a contar histórias nesse período. Pode ser o dia a dia heroico de um profissional de saúde, ou da turma que faz trabalho social e continua ajudando o povo da rua. Pode ser uma comédia mostrando o absurdo de uma ansiedade ou a dificuldade de ficar em casa. Os formatos são vários. O importante é
contar histórias que deem alternativas de leitura para quem quer saber sobre o assunto.
Também pode –e deve– serem buscados sentidos para o sofrimento que virá. Tal como a área das profecias espirituais, nossos autores podem e devem pensar os motivos maiores de uma epidemia como essa. Quais aprendizados podemos tirar?
Quais ensinamentos estamos tendo? Entender o sentido enquanto ele acontece é uma tarefa de grandes escritores e isso pode ajudar os leitores a suportar a realidade.
Como toda área médica, a escrita de histórias curativas tem que ter uma ética clara. Não podemos cair na tentação de fazer sensacionalismo, que pode até dar audiência, mas aumenta a ansiedade e o pânico que queremos combater. Não podemos irradiar fake news, não podemos aumentar a culpa de quem, por exemplo, não pode ficar em quarentena pois trabalha na rua. Discutir essa ética será parte desse trabalho.
Sabemos, por fim, que a arte de contar histórias é feita por cada um de nós, profissionais da escrita ou amadores, o tempo todo, em nosso dia a dia. Você conta uma história, por exemplo, na forma como transmite uma notícia oralmente para sua mãe idosa que não acessa a internet. Você também decide qual história deve irradiar quando opta por passar um texto ou áudio em seu whatsapp. Todos estamos contando histórias e irradiando narrativas sobre a pandemia. Todos, e não apenas os escritores, têm que começar a pensar a ética das boas histórias.
(*) Newton Cannito é diretor e roteirista, já ganhou os principais prêmios da TV Brasileira e Internacional, como APCA, ABRA e Emmy. Em 2010, foi secretário do audiovisual do Ministério da Cultura. É autor e roteirista de séries pioneiras no Brasil, como “Cidade dos Homens” e “9mm”. Além disso, fez “Z4” (SBT) e “Unidade Básica”, série da Universal Channel, que chega à 3ª temporada. Foi também supervisor artístico de séries de sucesso como “3%” (atualmente Netflix), “Natália” (Universal) e “Vida de Estagiário” (Warner). Como diretor, fez o filme “Magal e os Formigas”. Este ano, lança a série “Utopia Brasil”.
É doutor em Televisão pela USP, com a tese “A televisão na Era Digital” (Summus), e autor de mais 11 livros, entre eles “Manual de Roteiro” (Conrad).