Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Especialista na história da TV no Brasil contesta controvérsia sobre o 1º beijo

Walter Forster e Vida Alves em "Sua Vida me Pertence", a novela do primeiro beijo da TV brasileira / Reprodução

Radialista, jornalista, pesquisador de comunicação, professor e mestre em Teledramaturgia, Elmo Francfort defende a autenticidade do primeiro beijo na TV brasileira como aquele que historicamente é tratado como tal, na cena entre Vida Alves e Walter Forster.

Nesta terça-feira (31), valendo-se de um beijo de ensaio para os preparativos de lançamento da TV no Brasil, o site Na Telinha publicou que o professor Fernando Morgado, autor dos livros “Comunicadores S.A.” e “Silvio Santos – A Trajetória do Mito”, encontrou o registro daquele que, para ele, seria de fato o primeiro beijo dado diante das câmeras de TV no Brasil.

Mas “diante das câmeras” para quem? O episódio é de maio de 1950, anterior à inauguração da TV no Brasil, que só ocorreria em 18 de setembro, era um ensaio. A sustentação do professor se baseia em uma imagem na página 63 da edição de 27 de maio de 1950 da revista O Cruzeiro, que pertencia aos Diários Associados, mesmo grupo que fundou a TV Tupi. A foto foi tirada diante de um monitor e mostra o locutor Carlos Frias  beijando a atriz Aimée, sua mulher na vida real.

A legenda informa se tratar “do primeiro beijo televisado no Brasil”, até em tom de promoção do próprio Chateaubriand por seu futuro negócio. Era preciso atiçar a imaginação e o apetite do público por aquele novo meio de comunicação.

Como alguém que pesquisa o assunto há anos e assina uma prateleira de livros sobre televisão, Francfort pede a palavra para sustentar a história como ela foi contada por quem a protagonizou. Coordenador do Memória da Mídia, ele trabalhou ao lado de Vida Alves por 17 anos na Pró-TV, dedicada aos veteranos do veículo, e assina livros como “Almanaque da TV Cultura”, “Rede Manchete: Aconteceu, Virou História”, “Av. Paulista, 900: A História da TV Gazeta”, “Gabus Mendes: Grandes Mestres do Rádio e Televisão”, além de mais de 60 obras como colaborador.

Aliás, o pesquisador prepara para setembro um novo livro sobre a TV Tupi, cheio de histórias inéditas e detalhes técnicos para celebrar os 70 anos da TV no Brasil, a contar daquele dia em que Assis Chateaubriand plantou suas antenas no bairro do Sumaré, em São Paulo.

É sob este contexto que o Telepadi abre a Francfort o espaço solicitado por ele para esclarecer o caso por meio de um artigo assinado, a seguir.

 

Muito além de um beijo

 

Elmo Francfort

 

Hoje acordei com uma mensagem no celular: “O que você sabe sobre esse assunto?” Era sobre uma matéria, num grande portal, falando sobre verdades e mentiras relacionadas ao primeiro beijo na televisão.

Quem me conhece sabe que, por quase duas décadas, trabalhei ao lado de Vida Alves – atriz pioneira, que conforme o artigo “dizia” ser autora do primeiro beijo. Aí pensei nela, como muitas vezes faço: “minha amiga, esse assunto levantando polêmica de novo?”

A memória da TV continua sendo sempre revisitada, mesmo em tempos de novas plataformas! Razão para causar polêmica? Ou para ver alguém levantando o dedo de “eu descobri primeiro!” “Era mentira!” Olhem, as impressões que chegaram para mim, muitas condenando quem hoje não pode responder. Nem Vida Alves nem Walter Forster.

Colegas pesquisadores, de muita seriedade, me falaram: saia em defesa dos pioneiros. E saio, mais uma vez. Principalmente em respeito a Vida Alves. Irriquieta, inteligente, foi uma mulher sempre à frente de seu tempo. Polemizar sobre o beijo talvez seja o momento para revisitarmos sua importância (e a de Walter Forster).

Se muitas mulheres hoje têm espaço na frente e nos bastidores de nossa radiodifusão devemos a Vida Alves e a profissionais como Heloisa Castelar, Edith Gabus Mendes, Lia de Aguiar, Hebe Camargo e outras que abriram caminhos para uma igualdade entre gêneros. Autoras, atrizes, apresentadoras… Vida Alves foi uma das primeiras autoras da TV, antes de Ivani Ribeiro e Janete Clair, por exemplo. Muitas já estavam na área, só que ainda em rádio. Lembro Laura Cardoso contando, com carinho, que a Vida a levou para a televisão porque achava que o rádio era pouco para ela. Foi assim que estreou no “Tribunal do Coração”, programa de Vida. Tantos outros profissionais foram impulsionados por ela, como Walther Negrão, quando a atriz, em sua escola, a ART – Academia do Rádio e Televisão, descobriu esse incrível talento de nossa dramaturgia.

Não, Vida não precisava do beijo. Nunca precisou. Lembro que uma vez ela me contou sobre uma repórter infeliz que a disse: “Depois do beijo, o que mais a senhora fez na televisão?” E Walter Forster? O que seria de nós se um “crânio” da dramaturgia em rádio não tivesse levado o gênero para televisão com “Sua Vida Me Pertence” (1951-1952). Vale lembrar também que foi o primeiro beijo na primeira telenovela do mundo, conforme pesquisas de Mauro Alencar, Doutor em Teledramaturgia pela USP, já numa televisão ativa, com programação e estruturada em capítulos.

É hora de avaliarmos realmente o que vale a pena noticiar e como fazê-lo, principalmente quando mexemos com o passado. Existe uma coisa que se chama respeito à memória. Quando trazemos à tona mudanças, seja da história da TV, do Brasil ou do que quer que seja, temos que ter cuidado, respeito. Vida e Walter deixaram amigos, família, colegas. Gente que sempre acreditou neles e na história que contavam. Pois bem, conheço bem a história do primeiro beijo (aprendi muito com ela e com os pioneiros), de tantas vezes que ouvi Vida Alves me contar. Da ideia que partiu do Walter, da conversa dela com o marido autorizando (“tinha um pensamento moderno, era um italiano que já tinha visto no cinema os atores se beijarem”), que perdurou até o ultimo capítulo até acontecer, que eles deram um selinho, um beijo técnico, etc. Agora desmerecê-los? Essa história é verdadeira! Aconteceu o beijo, que não foi fotografado pelo Chico Vizzoni (que trabalhava na TV Tupi). Procurem registros da época. Vão achar. Inclusive algo que muitas vezes a imprensa se calou a respeito dessa primeira telenovela brasileira: a protagonista mulher não era Vida Alves, mas sim Lia de Aguiar – a principal estrela dos Diários Associados. Quantas vezes ouvi Vida contar essa história, mas diziam “deixa pra lá, fale do beijo, senhora…” Eu não duvido – e isso é uma suposição minha, como pesquisador e quem conheceu muitos desses pioneiros – é que Walter tenha convidado Lia, mas ela não aceitou, e por isso a “outra” da história, como Vida brincava sobre sua personagem, fez o famoso primeiro beijo em telenovelas. Minha hipótese deve-se ao perfil de Lia de Aguiar. Ela inclusive, após se casar, se afastou da TV, assim como Hebe o fez. Só depois de muito tempo retornou.

Lembro-me uma vez do David Grinberg, quando diretor de teledramaturgia do SBT, chegou a convidar Vida Alves para voltar a atuar após o falecimento de Lia de Aguiar – as duas eram muito amigas e foram grandes atrizes dessa fase inicial, estrelas de programas como “TV de Vanguarda”. Só que Vida não quis. Disse que tinha um propósito maior: criar o Museu da Televisão Brasileira, do qual Lia era também uma das integrantes, como Blota Junior, o diretor Luiz Gallon e muitos outros. E assim fez, recusando muitos convites, até falecer em 2017.

Depois de 17 anos em que estive na Pró-TV, o Museu da Televisão, e uma carreira de mais de 20 anos dedicada à pesquisa pela memória de nossos radiodifusores, com livros, artigos, produções, saio aqui em defesa da própria memória dos pioneiros. Não abandonei tal missão. Não comecei ontem e tenho argumentos para questionar a forma de revelar tal história. Pela primeira vez relato que, sim, eu sabia desse beijo na TV Tupi do Rio de Janeiro, em 1950. Ele aconteceu na fase experimental – já tinha visto a foto – de Carlos Frias e Aimée se beijando. Aí vem uma pergunta: é mesmo o primeiro beijo da televisão comercial, veículo voltado à massa? Só se for televisionado tecnicamente, mas para o público e numa fase oficial, não experimental continua a ser o de Vida Alves e Walter Forster. E se Vida sabia e mentia? Walter também? Não.

Explico também os bastidores dessa história. Uma vez eu estava numa reunião da Pró-TV, na antiga casa de Vida Alves na Vargem do Cedro, 140, quando o José de Almeida Castro – pioneiro, que foi diretor dos Associados, presidente da ABERT (Associação Brasileira de Rádio e Televisão), me chamou de lado e disse: “Sabe de uma coisa, rapaz, tenho provas de que esse primeiro beijo não foi deles. Foi lá na TV Tupi do Rio de Janeiro, eu estava lá”… Foi então me relatando tudo. Como pesquisador ficou aquela pulga atrás da orelha: vou apurar. Era uma informação rica, cheia de detalhes. Almeida Castro sabia o que estava dizendo. Apurei por anos, numa época em que não tínhamos na mão todos os recursos que temos, de revisitar publicações antigas como “O Cruzeiro”, “Manchete”, hoje digitalizadas. Como diriam os antigos: uma pesquisa feita “na unha”. Quando me certifiquei pensei em comentar com a Vida Alves. Pensei mesmo, muito, mas não o fiz. Por quê? Por um compromisso ético, de respeito, pensei que uma dia contaria aos amantes da história da TV, porém só o faria depois da passagem da Vida Alves. Que ser humano seria eu para colocar em dúvida uma história, criando talvez uma polêmica, que aos pesquisadores poderia ser considerada relevante? Muitas outras histórias com o tempo virão, mas temos que lembrar de uma coisa chamada valor humano. Vida Alves enchia os olhos, toda alegre, para falar do beijo.

Um dia esse episódio do ensaio técnico, anterior à inauguração da TV, iria aparecer, e apareceu. Eu mesmo ia contá-lo agora em setembro quando do lançamento do livro sobre a TV Tupi que estou escrevendo com o Mauricio Viel, pesquisador sério, pelos 70 Anos da TV no Brasil. Eu não faria isso quando Vida faleceu em 2017, nem em 2018… era muito cedo e jamais me colocaria como oportunista para ter lugar ao sol por conta dessa história. Uma das pessoas que mais admirei foi Vida Alves. Onde estiver, precisa descansar e sua memória também.

Ainda sobre o beijo eu lembro de muitas vezes Vida Alves comentar que chegou a ter raiva dele, porque das centenas de trabalhos que fez só falavam desse momento. Isso até um dia, que na escola da Tiê (sim, a cantora, sua neta), tinham num almanaque da Disney uma menção ao momento. Se a neta dela se orgulhava disso, por que ela não teria orgulho? Percebeu que o beijo era também uma introdução para falar de causas maiores, da valorização da memória da radiodifusão, do projeto do Museu da TV, dos eventos da “associação dos pioneiros”. De valorizar a sua gente, a história do país e mais que isso: uma essência, de uma fase em que se preocupava muito com o conteúdo, com as ideias de uma TV que poderia ensinar, educar, ser companheira das pessoas em casa.

Talvez tenha sido preciso surgir uma polêmica dessas para valorizarmos realmente quem foi Vida Alves e o que ela fez por toda nossa área televisiva. Mudamos, eu, ela, os pioneiros e profissionais atuais, com suas lutas, um pensamento sobre preservação da memória televisiva, como sua conservação. Demos mais respeito ao passado. Sou de família de pioneiros, mas foi com Vida Alves que aprendi uma coisa: “respeitem os pioneiros”. Da fase ao vivo, de erros e histórias engraçadas, ficou sublimada a importância real do improviso. Hoje, como professor, ensino algo que chamo de “improviso da criação”. É o que eles fizeram: erraram, riram, sempre buscando o máximo de perfeição com as condições que tinham, mas priorizando algo ainda maior: a criatividade. Não era feito de “qualquer jeito”! Na inauguração da TV Tupi de São Paulo, um dos contra-regras sangrou a mão de tanto apertar o prego de um cenário para que tudo saísse perfeito no ar. Improviso? Sim, mas com total dedicação.

Para concluir, vem ainda a mesma pergunta: ela mentiu? Vida e Walter sabiam? Não, não sabiam. É uma época ao vivo, sem videoteipe e totalmente regional de nossa televisão, os “heróicos” anos 1950. Muitos pioneirismos aconteceram em várias partes do Brasil e até mesmo em São Paulo, mas que não foram registrados, sendo que muitos dos colegas de área nem ficaram sabendo. É como se São Paulo e Rio de Janeiro fossem lugares equidistantes no planeta. Não “viralizava” e, se chegava muito longe, era algo do tipo: “ah, parece que fizeram isso, mas não tenho certeza”. Época em que as pessoas estavam mais preocupadas em criar, revolucionar, encontrar um meio para melhorar a comunicação dentro das casas usando o novo meio, época dos televizinhos e todo mundo na sala junto, após uma difícil fase pós- 2ª Guerra Mundial.

Hoje estamos nessa fase de Covid-19, de quarentena, repensando muita coisa, igual ao que fizeram naquele tempo. Estamos descobrindo que é possível descobrir pela internet o calor humano nas imagens e vozes transmitidas à distância. Muitas vezes nós, longe de nossas famílias, estamos próximos no coração, nos gestos transmitidos via videoconferência, como beijos. A história se revela aos poucos e com respeito, vamos encontrar, depois de tantos anos, algo ainda maior: a a beleza da essência humana. O primeiro, de muitos beijos e abraços virão após esse período interativo, distante. Precisamos encontrar algo que está acima de tudo: dar novo significado à VIDA.

 

Elmo Francfort é radialista, jornalista, pesquisador de comunicação, professor, Mestre em Teledramaturgia, autor de livros como “Almanaque da TV Cultura”, “Rede Manchete: Aconteceu, Virou História”, “Av. Paulista, 900: A História da TV Gazeta”, “Gabus Mendes: Grandes Mestres do Rádio e Televisão”, além de mais de 60 livros como colaborador, coordena o Memória da Mídia e trabalhou por 17 anos na Pró-TV, o Museu da Televisão, criado por Vida Alves.

 

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Cristina Padiglione

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