Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Com quase 60 anos de TV, Flávio Migliaccio arrancava gargalhadas sem fazer careta

Como Mamede (Flávio Migliaccio) em "Órfãos da Terra" / Divulgação

Flávio Migliaccio era antes de mais nada um sujeito engraçado. Não era preciso que mexesse um só músculo do rosto para arrancar gargalhadas da plateia, e até quando o personagem era sangue ruim a gente não resistia em rir. Talvez por isso seja ainda mais difícil aceitar que ele tenha se matado, como indica a carta encontrada pela família no sítio que ele tinha em Rio Bonito (RJ), onde o caseiro encontrou seu corpo.

Ao lado de seus óculos escuros e de uma caneta Bic, Migliaccio, que tinha 85 anos, deixou a seguinte mensagem, manuscrita: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice nesse país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora…num país como este. E como esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje. Flávio”

 

A polícia registrou o caso como suicídio.

Dos papéis mais longevos, ficam o Xerife, do seriado “Shazam & Xerife” (1972, Globo), e o adorável e descabelado Seu Chalita, de “Tapas & Beijos” (2011-2015, Globo).

Em “Órfãos da Terra” (2019), novela de Thelma Guedes e Duca Rachid, divertiu e comoveu o telespectador com Mamed Aud, que lhe rendeu o prêmio APCA, da Associação Paulista dos Críticos de Artes, como melhor ator de TV do ano.

Segundo a jornalista Edianez Parente, responsável pelo convite para o que o ator comparecesse à cerimônia de entrega, ocorrida no dia 17 de fevereiro passado, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, ele havia confirmado presença, mas não amanheceu bem naquele dia. Migliaccio enviou à organização dois vídeos curtos, que reproduzimos abaixo, agradecendo o troféu e pedindo que “as autoridades” deixem “os atores em paz”.

“Eu acordei com uma indisposição muito grande, foi impossível viajar pra São paulo. mas eu queria aproveitar e agradecer muito esse prêmio, sabe. Esse prêmio… A arte de representar não é uma coisa solitária, é uma coisa coletiva. Então, eu tive dua autoras ótimas, tive uma equipe muito competente. Muito obrigado.”

No segundo vídeo, Migliaccio completa: “Eu queria aproveitar também e dar um recado para as autoridades, com toda a humildade, eu peço, deixem o ator em paz. O ator não oferece perigo, o ator é um sonhador, ele não oferece perigo nenhum, ele quer sonhar só, quer conhecer outros mundos, é isso que é o ator. A própria sociedade, ela tem os seus mecanismos pra rejeitar ou aceitar as ideias do ator, então, deixem ele em paz, por favor.”

Migliaccio está também na minissérie “Hebe”, em cartaz no Globoplay, como maestro Fego, ao lado de Andréa Beltrão, com quem passou quatro anos no set de “Tapas & Beijos”, e de Maurício Farias, diretor de “Hebe” e do seriado.

Em “Êta Mundo Bom”, de Walcyr Carrasco, que acaba de voltar ao ar no Vale a Pena Ver de Novo, como Dr. Josias da Conceição.

Foi também à base de um cinismo visceral que Kanan Ananda entreteve o público de “Caminho das Índias” (2009), novela de Glória Perez, onde o personagem funcionava como crítica aos cacoetes culturais do machismo.

Irmão de Dirce Migliaccio, também atriz, famosa como uma das intérpretes da boneca Emília na versão de “O Sítio do Picapau Amarelo nos anos 1980 e como a caçula das irmãs Cajazeiras da novela “O Bem Amado”, Flávio nasceu no Brás, bairro da zona leste paulistana, em uma família de 17 irmãos.

Começou a fazer teatro em uma igreja no Tucuruvi, foi mecânico e balconista para ajudar a pagar as contas em casa, e iniciou a trajetória profissional no Teatro de Arena. Foi dirigido por Augusto Boal em “A Revolução na América do Sul”, por Gianfrancesco Guarnieri no clássico “Eles não usam Black-tie” e por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, em “Chapetuba Futebol Clube”.

Fez 27 novelas, 16 títulos entre seriados e minisséries, além de participar de programas de humor de Chico Anysio e Jô Soares. No cinema, foram 23 filmes como ator, incluindo “Terra Em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e  uma série de longas como Tio Maneco, também dirigido por ele. Na direção de cinema, assinou ainda seis filmes, sendo um de Os Trapalhões (Na Terra dos Monstros, em 1989).

Dono de um humor quase involuntário, embora ele tivesse noção de seu grande efeito, deixa uma obra de grande referência, mas difícil de ser tecnicamente reproduzida: é o tipo de talento que não se ensina a quem não dispõe de vocação para o ofício.

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Cristina Padiglione

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