Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Eu me sentia como macaco no zoológico’, diz Glória Maria sobre passeio com José Roberto Marinho

Glória Maria em Conversa com Bial

Em sua primeira entrevista após sete meses de luta contra um tumor no cérebro, Glória Maria inaugurou a temporada 2020 do Conversa com Bial. Falou sobre o momento atual, a inesperada perda da mãe, em fevereiro, por crise respiratória, e sobre o racismo que sofreu em todos os níveis e em tempos diversos.

Biógrafo do jornalista e empresário Roberto Marinho, Bial fez questão de citar uma outra biografia, posterior à sua, do fundador da TV Globo, que menciona uma passagem de relevante manifestação racista sofrida pela então repórter da Globo, em companhia de um dos herdeiros do grupo, José Roberto Marinho, que namorou Glória, com quem chegou a morar por um tempo.

O livro é “O Poder Está no Ar”, do jornalista Leonêncio Nossa. Bial recorda um trecho do livro em que José Roberto conta que o seu porteiro esteve no Country Club, ou Clube de Camping, reduto da alta elite carioca, com o filho, e o garoto sofreu grande preconceito dos sócios do local. Assim, decidiu levar Glória ao mesmo Country Club no dia seguinte, para enfrentar a fúria do ambiente à cor de sua companheira.

“Isso foi assim mesmo?”, pergunta Bial.
“Foi assim”, ela responde. “Uma coisa que eu nunca falei, levei um susto quando vi isso no livro, não sei como foi com o menino, mas com nós foi horrível: o clube inteiro olhando praquela mesa, eu não sabia o que fazer, e não entendi direito ainda aquela maluquice que era o camping, eu não entendia direito. E eu: ‘José, vamos embora, todo mundo olhando pra gente’. E eu não sabia se era só porque eu era negra ou se era também porque ele era o filho do Roberto Marinho, mas foi um dos momentos assim mais ruins, mais desagradáveis da minha vida, aquela sensação, eu me sentia como um macaco no zoológico, todo mundo ali, esperando a hora de dar uma banana.”

Glória relatou ainda que sofreu longa perseguição de João Figueiredo durante seu mandato como presidente da República. “O general Figueiredo não me suportava. Quando ele foi indicado, a gente foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, em que ele dizia: ‘para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento’. Eu sou muito boa em português, e ele citou uma coisa da gramática que não existia mais, e eu disse: ‘presidente, o senhor me desculpa, mas isso que o senhor citou não existe mais’. Ah, Pedro… ‘Tira essa mulher daqui, tira essa mulher daqui’, ele gritava, e eu saí dali escorraçada, e passei a ser o horror do general Figueiredo. Só que a segurança dele tinha sido do presidente anterior,o Geisel, e todos eles gostavam de mim, então, onde eu chegava, todos eles me davam o melhor lugar, e quando ele chegava, ele me via e falava: ‘Tira aquela neguinha da Globo daqui’. E eu passei todo o governo figueiredo ouvindo ‘Tira essa neguinha da Globo daqui!’.

Para Glória, o Brasil não está menos racista do que naquela época. “Tá racista igual. A única diferença é que hoje as coisas ganham uma proporção maior, nada mudou. A discriminação continua igualzinha, as pessoas acham que hoje é pior. Não, não. Quem não gosta de preto, não gosta. Quem é racista é racista.  Não adianta a Glória Maria apresentar o Jornal Nacional, o Globo Repórter, o Fantástico, não. Ela é negra? Então, tem que ser discriminada ou diminuída, porque as pessoas têm maneiras de exercitar esse racismo. Dizem ‘ah, elas não percebem’. Percebem,sim, elas sabem que estão sendo racistas e gostam de ser. Quem é racista, tem prazer em ser racista, tem prazer em diminuir o outro.”

Glória lembra que quando começou a apresentar programas, “as pessoas diziam: ‘ah, ela tá apresentando agora por causa do movimento negro’. Sempre tem uma justificativa pra você estar ali, nunca é porque você tem talento, nunca é porque você tem valor. Então, você vai aprendendo como é o valor das pessoas sobre você. E quando você nasce negro, e como eu não sou mulatinha, eu sou negra mesmo, eu sou preta, você aprende a reconhecer isso: a 30 km de distancia você sabe onde há um racista.”

Devo corroborar o que ela diz sobre o momento em que passou a assumir funções de apresentadora. Mas em 1998, quando ela assumiu a cadeira de titular do Fantástico, devo lembrar que houve uma confusão de informações.

A Globo havia anunciado que Glória ficaria interina no Fantástico e Carla Vilhena assumiria a revista após a Copa. Na hora de empossar a titular, a emissora definiu que Glória continuaria como titular, e lembro perfeitamente de ter recebido, naquela ocasião, protestos de movimentos negros que não queriam a saída de Glória, mas posso dizer que eu, então signatária de uma coluna na Folha de S.Paulo, deixei claro que isso nada tinha a ver com o mérito de Glória, realmente digna de tal posto. O que houve, pelo menos ali, foi uma volta atrás em decisão da emissora que indicava outro nome para o posto.

Bial lembrou que ele e Glória então dividiram dez anos de cenário no Fantástico e brincou: “Vamos esclarecer de uma vez por todas; eu não sou o pai da Laura e da Maria”.

Glória se emocionou ao lembrar da trajetória que tem travado contra o câncer e da perda da mãe, que, disse ela, pode até ser que tenha morrido pelo novo coronavírus, “nós não sabemos”, disse.

A jornalista saudou o fato de não mais ter de cobrir política hoje, pois já teria “matado alguém ou apanhado”, e refutou frases e ações do presidente Jair Bolsonaro. “E se te mandassem calar a boca?”, quis saber Bial. “Eu não calaria, e diria que ele deveria apenas responder”. Glória lamentou que a política esteja em níveis tão baixos de discussão.

“Dizer que o brasileiro está protegido porque se lava no esgoto, pra mim, é além de qualquer imaginação. Política, eu sempre aprendi, é de um nível tão tão mais alto, isso tudo é de uma tristeza….”

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