Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Globo perde graça com saída de Marcius Melhem da criação

Marcius Melhem no papel do padre do quadro Poligod, do 'Tá no Ar' / Divulgação

A Globo tratou o fim do contrato exclusivo com Marcius Melhem como parte de “uma série de iniciativas para se preparar para os desafios do futuro” e das “novas dinâmicas de parceria com atores e criadores em suas múltiplas plataformas”. Em recente reportagem apurada por mim para a Folha de S. Paulo, a emissora reafirmou que não extinguirá o seu banco fixo de elenco, mantendo alguns nomes que considera talentos estratégicos.

Há de fato novas contratações e um investimento em volume e diversidade de rostos e produções que endossam essas escolhas. Mas este não é o caso.

O Marcius Melhem do “Os Caras de Pau” era um talento bacana, muito bom. No entanto, naquelas circunstâncias, era mais do mesmo que já havia na Globo.

Já o Marcius Melhem que participou da criação do “Tá no Ar”, melhor humorístico criado na emissora desde o fim do “TV Pirata” (cuja equipe de redatores era quase a mesma do “Casseta & Planeta”, programa sufocado pela censura interna ao longo dos anos), este é um talento que fará falta a uma empresa que diz manter nomes estratégicos sob o seu guarda-chuva de exclusividade.

Convém notar que o Tá no Ar tinha um tom claramente mais progressista que o “Fora de Hora”, programa lançado este ano, após seis temporadas do “Tá no Ar”.

O “Tá no Ar” era muito mais inventivo que o “Fora de Hora”, cuja criação não justificava o fim de seu antecessor, como escrevi neste blog.

O primeiro era mais ácido, trafegava no limite das provocações morais, flertando com conteúdo sobre sexo e religião. Tinha clipe sobre bissexualidade, rap com Jesus, ajoelhava para rir de católicos, umbandistas e evangélicos, debochava de “reaças”, parodiava “Walking Dead” contra pautas conservadoras e ridicularizava a elite paulistana em tom de Amaury Júnior.

O “Tá no Ar” era infinitamente mais político que o “Fora de Hora” no sentido de atiçar a reflexão com vara curta, embora as milícias, já no governo Bolsonaro, tenham ganhado ali alguma provocação.

Havia paródias políticas divertidas pela voz de Marcelo Adnet, mas o “Fora de Hora” era mais Trapalhões do que Monty Python ou SNL. Ali já tivemos um arrefecimento do que nos foi oferecido nos seis anos anteriores.

Convém notar como o tom da provocação baixou. Ao mesmo tempo, “Isso a Globo Não Mostra”, quadro semanal no Fantástico, sumiu após a licença de Melhem, que pediu sua saída (não poderia ter sido afastamento provisório?) do cargo para acompanhar uma delicada cirurgia de sua filha nos Estados Unidos, onde esteve até poucos dias atrás.

No momento deste rompimento anunciado como decisão de comum acordo, e o blog apurou que foi mesmo, paira nos bastidores da emissora o receio de recuo da pauta progressista que a Globo tem adotado em alguns poucos programas, enfrentando bravamente a fúria bolsonarista. Ainda.

Há dois anos, já perdemos o “Amor e Sexo”, programa que rompeu com pudores para falar sobe o ato que bota todos nós no mundo. Mas, veja que bom, esse é um assunto que pode ser abordado sob o ponto de vista recreativo, sem fins de reprodução. Pena que essa abordagem perdeu espaço na Globo.

Silvio de Abreu, diretor de teledramaturgia, ocupadíssimo com as novelas, principal produto da emissora, e mais ainda neste momento de pandemia, já havia acumulado a vaga deixada por Guel Arraes no comando das séries, um braço essencial para o que a empresa trata como seu futuro, o GloboPlay. Agora, Abreu assume também a cadeira deixada por Melhem.

Naturalmente, não é uma escolha sua, mas cabe a pergunta: que dinâmicas são essas que a Globo adota para um futuro onde séries, telenovelas e humor sobrecarregam um único profissional? Por que a autocrítica “Isso a Globo Não Mostra?” perdeu espaço? Que futuro pluralista é esse que abre mão de segmentos para convergir decisões em uma só cabeça?

É preciso dizer ainda que embora tenha pedido afastamento da emissora por razões pessoais, Melhem enfrentou acusação de assédio moral pouco antes de entregar o cargo, fato que não mencionei no texto original deste post e o faço agora, cobrada por leitores e me desculpando pela omissão. De toda forma, queremos crer que os motivos que conduzem Globo e Melhem para tal desfecho não justifiquem o recuo que se desenhou no humor da emissora este ano.

Para não dizerem que “passo pano”, vamos ao caso: Melhem foi alvo de uma investigação de denúncia de assédio moral feita por Dani Calabresa. Segundo o colunista Léo Dias, que noticiou o episódio, as atrizes Renata Castro Barbosa e Maria Clara Gueiros também haviam denunciado Melhem, o que as duas negaram no mesmo dia, assim como Marcelo Adnet negou ter testemunhado a favor das atrizes.

Como o episódio aconteceu durante o recesso de gravações de fim de ano, o elenco do Zorra, mais técnicos e roteiristas, endossaram um abaixo-assinado a favor de Melhem, defendendo-o da prática de assédio moral, cuja íntegra reproduzo a seguir.

Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 2020
à direção de Desenvolvimento e Acompanhamento Artístico
C.C. Coordenação de humor

Prezados,

“Durante as nossas férias fomos surpreendidos com a publicação ‘coordenador da área de humor da Globo é denunciado por assédio moral’, veiculada em 26/12/2019 em O Dia e UOL pelo colunista Leo Dias com o subtítulo ‘Marcius Melhem está sendo denunciado por assédio moral por uma série de atrizes do núcleo de humor da emissora’. Sobre isso, nós, profissionais ligados ao programa Zorra abaixo-assinados registramos aqui o nosso inconformismo com o teor da nota e declaramos à direção da Globo que o nosso colega Marcius Melhem em tempo algum praticou assédio moral com qualquer um de nós. Temos todos ali uma relação baseada no diálogo, profissionalismo e respeito. Toda solidariedade a Marcius Melhem diante dessa maldade, que não vai destruir a harmonia entre nós, nem o prazer de trabalhar neste projeto que nos orgulha tanto.”

 

(*) Texto alterado às 10h de 15/08

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Cristina Padiglione

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