Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘A Força do Querer’ testa níveis de intolerância no país após 3 anos

Carol Duarte, que fez o transexual Ivan, e Silvero Pereira, a transformista Elis em "A Força do Querer". Foto: Estevam Avellar/Divulgação

Nem o elenco de “A Força do Querer”, novela que volta ao ar nesta segunda-feira (21), na faixa nobre da Globo, sabe que plateia a história de Glória Perez vai encontrar três anos depois de sua exibição original. As incertezas maiores dizem respeito às tramas de Ivan (Carol Duarte), um transexual que assim se descobre no decorrer do folhetim, e de Nonato (Silvero Pereira), que se apresentava como a transformista Elis Miranda.

Afinal, o país de hoje é menos intolerante ainda do que em 2017, como podem parecer crer as agressões à comunidade LGBTQ+ e os seguidores do presidente eleito em 2018, que já manifestou homofobia em várias ocasiões?

“Três anos é pouco e dá para olhar com os óculos de 2020, parece pouco, mas é muito”, acredita Carol. “Tantas pessoas trans já conquistaram tantos espaços, que rever essa novela é interessante para saber o quanto a gente andou e o quanto a gente ainda precisa caminhar. Isso foi em 2017: onde estamos e para onde queremos ir?”

“Veio uma onda conservadora”, continua a atriz, “mas tem pessoas ocupando espaços que não ocupavam”. “Houve uma evolução, eu acho que evoluí junto nesse período. Teve uma trasformação em mim.”

“A gente fez mudanças bastante significativas”, concorda Silvero.

Para Dan Stulbach, que viveu o pai de Ivan (que começa a novela como Ivana), o folhetim foi transformador. “Eu aprendi muito com essa novela, pelo personagem que eu fiz e pelo monte de temas que a novela aborda. A novela é corajosa nesse sentido. Acho que este é o único país do mundo onde os atores não usam ponto eletrônico e o ator e o autor desejam ir além do entretenimento”, afirma.

“Saí diferente do que entrei”, continua Stulbach. “Muitas pessoas me abordaram na rua para agradecer – ‘obrigado por trazer esse tema e de alguma forma mudarem essa realidade’. Isso deixa o nosso trabalho muito maior, muito mais importante, somos sonhadores ambiciosos, ingênuos, procurando um país melhor.”

Stulbach, Emílio Dantas, Carol, Silvero, Paolla Oliveira e Maria Fernanda Cândido conversaram com um grupo de jornalistas virtualmente, por meio do Zoom, na última semana.

Dantas lembrou de um casal de amigos que só com a novela conseguiu fazer a abordagem que queria fazer com o filho, trans, mas não sabia como agir. “A grande mudança é a cabeça do público. Acho que vai ser uma experiência muito boa. A novela, muito acima de como vai ser interpretada, o que cabe ou não, apresenta temas que estão muito além do atual. A gente foi precognitivo.”

Maria Fernanda lembra que sua personagem, Joyce, era extremamente individualista, e se surpreendeu, na época, pelo fato de ela não ter sido odiada. “Se ela agora não for amada vai ser uma sorte”, brinca Paolla, que vivia a policial Jeiza. Os colegas riem. A gente ri, mas é de nervoso, eu diria.

“Eu acho que o nosso país piorou, se algumas pessoas tinham vergonha de mostrar a sua intolerância, hoje elas têm orgulho em mostrar o seu preconceito. O preconceito é filho da ignorância. Acho que a reação será maior porque a intolerância está mais exposta”, diz Stulbach.

Emílio Dantas, o Rubinho, ressalta que o importante é levantar os assuntos que ali estão. “Eu estava conversando com o meu pai, que é de uma família militar, e a gente precisa conversar, senão perde a ferramenta para o que está sentindo. A pandemia trouxe muito desentendimento, mas também mais entendimento. Os pais começaram a ouvir mais os filhos e puderam, dentro dos seus próprios casulos, modificar um pouco a realidade.”

Sobre a mudança de termos, palavras e maneiras de falar a respeito de determinados assuntos, Silvero lembra que algumas frases hoje podem até arranhar os nossos ouvidos, mas o importante é lembrar que foram ditas com muita honestidade na época em que a novela foi produzida.

Estreante em novelas, ele viu Nonato ganhar espaço ao longo da história. E chegou a comentar com Glória Perez que já que o personagem havia caído nas graças do público, ela bem que poderia matá-lo para, quem sabe, gerar uma comoção sobre o fato. “Não! Nós não vamos matar o seu personagem! Vamos mantê-la viva! Vamos fazer diferente do que acontece na vida”, respondeu-lhe a autora, em referência à criminalidade que dizima o público LBGTQ+ no Brasil.

No final da história, Nonato se apresentava como Elis Miranda mais uma vez, então com um desfile patrocinado por uma grande grife de lingerie. “O que havia ali era o carinho do público, sem se importar com a identidade sexual da pessoa”, comemora o ator.

Na época, escrevi neste blog (e aqui trago o link) que como publicitário não joga dinheiro fora, a ação representava uma vitória das causas LGBTQ+ em detrimento da gritaria de uns poucos nas redes sociais, já que esse é um tipo de ação geralmente embasado em pesquisas que garantem o êxito do anunciante.

Dan Stulbach reforça uma tese que tem fundamento: “Eu acredito que o poder da transformação vem pela emoção, não pelo argumento. Essa força da emoção continua presente. A grande novidade vem do público. Como seria recebido hoje o cara da raquete?”, lembra ele, sobre o personagem icônico de “Mulheres Apaixonadas”, Marcos, que batia na mulher, vivida por Helena Ranaldi, com uma raquete.

“Mulheres Apaixonadas”, a propósito, está em reprise no canal Viva. O enredo do raqueteiro, criação de Manoel Carlos em 2003, foi um dos mais bem-sucedidos merchandisings sociais sobre violência contra a mulher.

“Há uma minoria que pratica a estupidez por prazer e orgulho, absolutamente sem punição, muitas vezes nas redes sociais. Mas essas vozes já existiam no momento da novela ‘ A Força do Querer’ e não eram tão orgulhosas e nem tão protegidas como hoje”, completa Stulbach.

A resposta do ator veio na esteira de uma pergunta minha, que chama atenção justamente para uma intolerância que parecia mais trancafiada no armário antes da eleição de Jair Bolsonaro.

Stulbach emenda que “esse embate é necessário”, desperta sua curiosidade. “E não é o tipo de debate que vai me deixar escondido em casa: que bom que vamos discutir isso”.

Paolla vê uma vantagem no fato de os monstros botarem a cabeça para fora, agora: “A intolerância nunca não existiu, mas o inimigo, quando se mostra presente, a gente consegue combater melhor”.

“Entendo essa visão de retrocesso, mas, ao mesmo tempo, a gente está destruindo as cabaninhas, isso é um avanço, já é uma explosão”, completa Dantas, otimista.

 

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