Negacionismo que desafiou a imprensa na pandemia faz ‘Cercados’ parecer roteiro de ficção
A história de “Cercados”, documentário que focaliza os esforços da imprensa brasileira diante do negacionismo patrocinado pelo presidente da República durante a maior crise sanitária mundial dos últimos cem anos, se passa bem aqui, debaixo dos nossos olhos. Mas este é um enredo tão abarrotado de elementos conflitantes, que mais parece roteiro de ficção.
Produzido pelo GloboPlay, o filme resgata cenas de reuniões de pauta do Jornal Nacional, conversas e relatos sobre decisões que afetaram todo o noticiário desde março, com depoimentos não só da equipe do JN, mas também de representantes desta Folha, do Estadão e da própria Globo, frente a um presidente que fez questão de piorar um cenário já caótico.
Diante de mortes e caixões enfileirados, o chefe da nação assumiu a liderança do negacionismo ao desprezar a importância do vírus, sabotar o isolamento necessário para reduzir mortes e contaminações, xingar a imprensa e demitir os ministros interessados em organizar o cenário.
Essas sequências são mostradas em “Cercados” ao mesmo tempo em que vemos a repórter Danielle Zampollo, do Profissão Repórter, dando extensos plantões na porta de hospitais, ouvindo a aflição e o surto de médicos que estão na linha de frente, e de familiares em busca de informações sobre vítimas intubadas.
O desprezo de um presidente que dá de ombros e diz “não sou coveiro” se contrasta com esses profissionais da saúde, todos exauridos da missão de comunicar aos entes queridos a notícia que eles nunca gostariam de receber, sendo muitas vezes acusados de “assassinos”. Afinal, não era só uma gripezinha?
A edição traz ângulos inéditos das humilhações diárias a que o presidente da República e sua claque de seguidores fanáticos submetiam a imprensa, na porta do Palácio da Alvorada até junho. Vem daquele cercadinho, antes de mais nada, a referência para o título “Cercados”, mas não só. “Cadê a rede funerária?”, instigava Jair Bolsonaro sobre os repórteres da Globo. “Cala a boca”, “canalha” e “patifes” foram outras gentilezas suas arremessadas contra os profissionais de imprensa, então contra a Folha.
Em prova de resiliência, os profissionais da notícia se mantinham civilizados diante de tantos constrangimentos.
O documentário retrata a decisão das chefias de retirar suas equipes daquele plantão que só servia ao picadeiro de Bolsonaro, até em razão da segurança física dos repórteres. Não abandona, no entanto, os impropérios ali proferidos e transmitidos pela rede de apoiadores do presidente, conteúdo que muitas vezes pode esbarrar no interesse público, como mostra uma conversa entre William Bonner e equipe.
Nos bastidores do Jornal Nacional, vemos como nasceu, por sugestão de Rosangela Del Gesse, coordenadora de produção do JN, o painel de fotos ao fundo do noticiário sobre a pandemia, a fim de evitar que tantos números provocassem a banalização das estatísticas de mortes que foram se acumulando, dia após dia, aos milhares, dezenas de milhares, e depois, centenas de milhares..
O espectador testemunha ainda como Bonner se policia para não emprestar uma entonação duvidosa a determinada notícia e como o estresse vai consumindo a equipe, inclusive os apresentadores, Bonner e Renata Vasconcellos.
Vale recordar como o JN fez questão de abrir um plantão no meio da novela das nove para anunciar o número de mortos daquele 5 de junho, quando o governo retardou a divulgação dos índices de óbitos e contaminados pelo terceiro dia consecutivo. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, debochara o presidente poucas horas antes.
Logo em seguida, o governo decide que não mais irá divulgar dados diários, e a Folha lançou então a iniciativa de um consórcio de veículos de imprensa, a fim de somar os índices de cada 24 horas, sem mais ficar refém do Ministério da Saúde. O grupo foi então formado pelo jornal, ao lado do UOL, do Globo, Estadão, G1 e Extra.
O filme visita Estadão e Folha em suas redações vazias, mostrando como se fez valer o home-office, e também nas capas e decisões mais emblemáticas, incluindo O Globo, com imagens clássicas das rotativas de cada um. O filme também captura o trabalho de profissionais das afiliadas da Globo em outras capitais para além de Rio, São Paulo e Brasília.
Há cenas de histeria de apoiadores do presidente, gente que se ocupa de invadir coberturas ao vivo da Globo para gritar “Globo Lixo” na tela da emissora, ao vivo. O contexto do filme ridiculariza ações do gênero sem nada acrescentar às imagens, patéticas. E resgata marchas com rituais neonazistas que pediam o fechamento do STF e do Congresso, relatando as ações do Supremo contra empresários e sites apoiadores de núcleos como o autointitulado Grupo dos 300.
Mesmo não estando diretamente escalada para a cobertura da pandemia, faço parte desses bastidores como membro de uma redação (Agora São Paulo/Folha de S.Paulo), colunista de TV atenta à feitura e repercussão de seus noticiários, e como vizinha da redação concorrente à minha (Estadão), onde trabalha meu companheiro, abrigado portanto sob o mesmo home-office que o meu.
Daí que “Cercados” não deveria me causar perplexidade. Sentar na plateia e ver o conjunto dessa obra, no entanto, é surpreendente até para os personagens que dela participam.
Recomendo muito especialmente a estudantes de jornalismo, a quem tem paixão pelo ofício, mas também a quem equipara o jornalismo profissional aos corneteiros de redes sociais, sem noção alguma dos valores e procedimentos de uma apuração e de uma edição. Recomendo a quem tampouco compreende a distância entre jornalismo e publicidade, principalmente na esfera do poder público.
Talvez fosse mais rico ouvir profissionais de outras TVs, como Record, SBT, Band, TV Cultura e CNN Brasil, mesmo sabendo que algumas emissoras se renderam à forma como Bolsonaro gosta de ser retratado, algo bastante distante do que ele é e representa para a nação. Seria até um meio de expor mais tintas num jogo de tantos contrastes.
Mas “Cercados” não se ocupa da concorrência direta. Há imagens de uma repórter da TV Cultura acuada pela presença de fãs do presidente dispostos a atrapalhar seu link, na avenida Paulista, e uma breve passagem pela redação da Band News FM para registrar o deboche de José Simão a uma das inúmeras fake news sobre a cura da Covid.
Aliás, seria bom que as pessoas vissem como funciona o processo de checagem de notícias, outro presente do documentário a uma larga parcela da sociedade que está doente na capacidade de se informar.
O filme tem roteiro de Eliane Scardovelli, repórter do Profissão Repórter, e direção de Caio Cavechini, editor executivo do mesmo Profissão Repórter, programa da Globo
Obs.: Texto modificado em 21/12/2020, às 14h.