Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Dom’ fisga espectador ao conjugar guerra contra o tráfico com drama familiar

Gabriel Leone: atuação irrepreensível como Dom / Divulgação

Nunca houve na Amazon Prime Video uma produção original brasileira como “Dom”, que chegou à plataforma na sexta-feira (4), com oito capítulos de uma hora cada, em condições de manter o espectador refém da TV por oito horas seguidas, diante de um Gabriel Leone loiro, com lentes azuis, de performance avassaladora.

Capaz de conjugar a guerra contra o tráfico com um sensível drama familiar, na curta distância que separa o comércio de cocaína do morro e a abastada zona sul carioca, a produção tem direção de Breno Silveira, diretor que honra o largo crédito já obtido por um currículo que inclui o filme “Dois Filhos de Francisco” e a série “Um Contra Todos”, produção para a FOX, hoje disponível no Globoplay.

Antes de mais nada, convém reparar que embora “Dom” possa ser classificada no gênero dito Ação, há um ponto de absoluta convergência com a introspectiva “Onde Está o Meu Coração?”, série de George Moura e Sérgio Goldenberg disponível no Globoplay: a dor familiar.

Quando um dependente químico se revela, sublinhando sua doença, todo o núcleo familiar de seu entorno adoece. Isso vale para a moça de classe média alta que se rende ao crack (Amanda, vivida por Letícia Colin) e para o rapaz de classe média que se entrega à cocaína (Pedro Dom, papel de Leone).

Esse é um ponto muito forte em “Dom” e, no entanto, subestimado nos enunciados que venderam a série como uma adaptação da história do bandido bonito da zonal sul carioca que virou assaltante para sustentar o vício e uma vida de curtição.

Não se engane. A produção vai bem além, e trata de uma história real, já relatada nos livros “O Beijo da Bruxa” (2011), de Victor Lomba, pai de Dom na vida real (na série representado por Filipe Bragança e Flávio Tolezani), e “Dom”, de Tony Bellotto, amigo de Silveira e a par da relação entre o diretor e Victor, que contou toda a sua vida ao cineasta alguns anos antes de a história virar série, com produção da Conspiração.

A série apresenta também um retrato da polícia que diz muito sobre a corrupção vigente na corporação fluminense. Quando o estado consegue ser mais bandido que o ladrão, não há chance de alguém se salvar.

Quase tudo funciona muito bem no produto final, do enredo à direção de atores, do texto à montagem. Faz-se aqui uma ressalva (e não que isso atrapalhe a narrativa) quanto ao envelhecimento nulo de Flávio Tolezani como pai do protagonista. Enquanto Dom é vivido por três atores diferentes, em uma feliz transformação de seu crescimento, Victor, como pai, é um só, com os mesmos cabelos, o mesmo viço e a mesma barriga negativa. Nem o poço em que o filho afunda o faz perder cabelos ou ver fios mais brancos.

Quando jovem, o personagem é interpretado por Filipe Bragança. A mãe de Dom é Laila Garin, que tampouco envelhece junto com o filho, mas com quem o protagonista, ainda pequeno, na pele do ótimo Guilherme Garcia, tem uma semelhança impressionante.

A série presta alguns tributos ao cinema nacional, a começar pela trilha do baile funk que abre a produção, o “Rap das Armas”, remissão a “Tropa de Elite”. Logo veremos que Victor é uma espécie de capitão Nascimento que fracassa. A produção faz também alusão a “Cidade de Deus”, quando Dom se vê imbuído de seu poder e, ao ser chamado de “Lourinho”, retruca: “Lourinho é o caralho, meu nome é Dom”.

Isso sem falar no adorável Ribeiro, chefe do tráfico no morro no início da chegada da cocaína ao país, lá pelos anos 1970, encarnado por Fábio Lago, mesmo ator que deu vida ao Baiano, assassinado com satisfação pelo Capitão Nascimento (Wagner Moura). Aqui, ele volta à função, mas como um sujeito que devolve seus lucros ao bem-estar da comunidade, um traficante comunista mesmo, adorado pelos moradores do Dona Marta naquele tempo.

Ditas aqui, fora de contexto, e, principalmente, de enquadramento, frases como “Eu quis salvar o país, o filho dos outros, e eu não olhei o meu próprio filho” podem soar piegas, mas o espectador verá que o script faz parte do show e alcança um espectador que carece de algum didatismo. O enredo traça um histórico da chegada da cocaína ao Brasil, nos anos 1970, e da transformação da boca de fumo em boca de pó.

Acompanhar essa história é se compadecer da dor desses pais e da falta de dor daquele filho, que, ainda menino, atropelado, revelará um diagnóstico: “Ele não chora, como se não sentisse dor”, informa o médico. “Isso é ruim?”, questiona o pai.
“É”, define o avô (Roberto Birindelli). “A dor determina limites.”

Breno Silveira é bem-sucedido na simultaneidade de três tempos que se revezam na tela, quase como um “This is Us” de Copacabana. Ali está o Victor jovem,  que por acaso se torna espião da polícia no morro, o Dom ainda criança, propenso a todo tipo de perigo, e o Dom crescido, incontrolável, após várias internações.

Uma sucessão de especialistas do ramo psi aparecem traçando soluções distintas, e por vezes, díspares, do problema, deixando claro que não há pai seguro do que fazer diante de um filho que é dependente químico. Uns dizem que é preciso dar liberdade, outros, que é preciso trancar tudo.

A dramatização da trajetória de Pedro –que adota o codinome “Dom” em referência a Dom Pedro– e o contexto da droga no Rio não são os únicos cenários de vida real a inspirar a ficção. Há menções ao envolvimento do Exército Brasileiro no tráfico de armas e de drogas, quase como uma premonição ao oficial preso com 39Kg de cocaína em avião da FAB em 2019, na Espanha.

Outra coincidência contemporânea é a citação do policial achacador ( André Mattos), miliciano de Rio das Pedras, reduto do ex-assessor da Família Bolsonaro, Fabrício Queiroz, e de oficiais homenageados pelo clã de quem hoje ocupa a presidência do país. E olhe que a produção antecede a pandemia.

Em resumo, “Dom” vale muito a presença da plateia. E deixa gancho para a chegada de uma segunda temporada. Embora já se saiba como essa história acaba na vida real, convém confiar na capacidade de um bom diretor de promover alguma reviravolta no roteiro. Aguardemos.

 

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Cristina Padiglione

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