Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

O desabafo da irmã de Dom: quais os limites da ficção que bebe na vida real?

Dom (Gabriel Leone) e Vitor (Flávio Tolezani) em cena da série / Divulgação

Irmã real de Pedro Dom, personagem retratado na série “Dom”, da Amazon Prime Video, Erika Grandinetti publicou um depoimento comovente no Facebook e Instagram sobre as distorções que a produção dirigida por Breno Silveira faz a partir dos papéis de sua mãe e de seu pai na ficção.

Na série inspirada na vida de Pedro Dom, o pai, Luiz Victor Lomba, na obra chamado como Vitor Dantas, com interpretação de Flávio Tolezani, se sobressai como o policial honesto que luta mais que toda a família pela recuperação do filho, Pedro, viciado em drogas desde criança. A mãe do personagem, vivida por Laila Darin, ocupa um segundo lugar nessa batalha e por vezes é retratada como alguém mais omissa que o marido.

Erika esclarece em seu depoimento que a mãe nunca autorizou a produção da história de seu filho, antes de mais nada em razão da dor que toda a trajetória de Pedro lhe causou, da dependência química aos assaltos praticados por ele, um jovem bonito da zona sul carioca, até sua execução pela polícia.

Poderíamos recorrer à argumentação básica de que isto é ficção e não documentário, e o próprio Breno Silveira fez questão de informar que a produção é baseada em elementos reais, sem no entando ser fiel à realidade.

Mas a obra, produção da Conspiração para a Prime Video, se valeu de nomes reais e da própria história real de Pedro para ser anunciada e vendida aos assinantes. Pedro Dom é personagem de noticiário e ali se apresenta com ações heróicas do pai que, segundo Erika, foram protagonizadas pela mãe, numa inversão de méritos.

O blog procurou por Breno Silveira, diretor a quem o pai de Dom contou sua versão da história, mas ele só se posicionou mais tarde, para a sua equipe, enquanto grava a 2ª temporada da série, por meio de uma carta. O diretor também se valeu do livro “Dom”, de Tony Belotto, a quem ele mesmo apresentou Victor Lomba, pai do personagem real. Diretor de “Dois Filhos de Francisco” e “Era Uma Vez…”, Silveira inspirou aquele policial aposentado que queria contar sua história, ou a sua versão da história com o filho, por volta de 2009.

Aguardamos ainda um posicionamento da Amazon Prime Video sobre os relatos de Érika, que pede que as pessoas não vejam a 2ª temporada, já em gravação pela produtora Conspiração. Ela revela que o pai era uma pessoa violenta e fantasiosa.

“Meu pai nunca internou meu irmão [como é mostrado na série], ao contrário, tirava da internação fazendo cena. Os acessos de fúria eram horríveis, ele espancava nossos cachorros, por aí, e pra bem pior”, disse ela.

“Quem acorrentou o filho de desespero foi ela [a mãe, ao contrário do que aparece na série], quem subia até a boca de fumo era ela [na série é o pai quem surge neste episódio, fato que ele próprio relatou ao diretor, segundo contou Silveira], quem internou foi ela, e tudo o mais. E ele sabia, sim, que o filho estava sequestrado [a série informa que ele não soube de nada e a mãe resolveu tudo sozinha, com a filha], não deu um tostão. E no dia da morte do filho se apresentou pros holofotes dizendo ter uma ONG para ajudar drogados, que NUNCA existiu. Maquiavélico”, completa Erika.

“Ou alguém acredita que alguém sobe o morro, chega na boca de fumo, armado, diz que é policial e não sai com um tiro no meio da testa?”, diz ela, em referência à cena que o pai relatou ao diretor.

Como já se discutiu no caso da série “O Mecanismo”, de José Padilha para a Netflix, os criadores de uma produção ficcional podem inventar novas vertentes a partir de um fato real, claro. A discussão começa quando as distorções recriam fatos testemunhados ou praticados por personagens que se sintam ofendidos ou desacreditados a partir daquele enredo. É um quadro delicado.

Como artifício de dramaturgia, o fato de Vitor Dantas, na ficção, parecer um cara tão bacana, que tinha até compaixão por prostitutas e se comovia com o drama do filho, torna a série mais densa, com mais conflitos para alimentar a imaginação do público. A plateia se pergunta como pode um garoto se afundar tanto diante de um pai tão bacana?

Já um sujeito violento como este que Érika descreve daria ao público uma válvula de escape para justificar a tragédia de Dom, na linha de raciocínio chavão, de que o garoto se perdeu na vida porque o pai não era flor que se cheirasse.

Se a história fosse pura invenção e não tivesse o poder de reabrir as feridas de uma vida toda desta mãe, tudo bem. Mas não é o caso.

Victor Lomba pertendeu ao Esquadrão da Morte, grupo que trabalhava com uma lei própria de pena de morte para aqueles que não considerava “gente do bem”, incluindo pessoas contrárias ao regime militar nos anos de ditadura.

Todo o relato de Silveira é baseado nos depoimentos desse pai que agora Érika sublinha como violento e mentiroso. Mas se a mãe nunca autorizou que a história fosse transformada em entretenimento, cabe perguntar por que mesmo assim ela foi produzida? Por que os nomes reais foram mantidos?

Independentemente de julgar quem está certo ou errado, convém buscar meios de se debater sobre produções baseadas em personagens reais, seus limites de reinvenção e suas restrições por parte dos donos de cada história. Não é a primeira nem será a última vez que uma dramatização machuca e contraria pessoas envolvidas nos scripts vividos fora da tela.

Abaixo, o relato de Érika:

“Carta desabafo.

A Mãe de Pedro Machado Lomba Neto, vem a público dizer que desde o início, por volta do ano 2006, NÃO DEU AUTORIZAÇÃO, NÃO CONCORDA com a produção da série Dom.

Me chamo Erika, sou IRMÃ MAIS VELHA de PEDRO DOM.

Infelizmente meu papel neste exato momento é muito duro, ter de expor publicamente nosso desespero, vida familiar, dores, e impotências.

Minha mãe, separado de meu pai, desde sempre disse NÃO a esse projeto.

Mas, sua voz não foi ouvida…

Sua história de vida com seu filho, a morte de seu filho se tornou um produto, pronto pra consumo.

Preciso fazer um recorte de gênero neste caso, por quê a voz da MÃE foi descartada? Provavelmente por ser mulher.

Vou criar uma imagem mental pra que tudo fique bem claro:

Imagine que vc tem uma ferida, do tamanho das suas costas.

Seu ex marido diz:
Olha vou ganhar dinheiro com as suas dores… e chama mais homens, sozinho ele não iria conseguir, sabem?

Que juntos arrancam a casca da sua ferida, e vc sangra, de novo, toda sua dor, história de luta, e dói muito.

Ou alguém acha que depois de ter seu filho morto, alguém em sã consciência, quer reviver as dores?”

 
Em tempo: “Dom” é a série em língua não inglesa mais vista entre as produções originais da Amazon Prime Video e primeiro grande investimento da plataforma no Brasil.

 

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Cristina Padiglione

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