Sem uma palavra, curta de animação brasileiro aborda males universais
Quem assiste a nove minutos de filme não pode imaginar que aquele conteúdo consumiu quatro anos de um grande time de profissionais experientes, calejados pelo esforço de financiar a realização de suas criações. “Stone Heart”, curta-metragem de animação que fará sua estreia mundial no Festival de Cinema de Gramado (de 13 a 21 de agosto), dispensa palavras para ter compreensão universal e tem um poder de síntese capaz de suscitar uma infinidade de reflexões.
Não é só a “historinha” do filme, de uma atualidade desconcertante, que se faz entender em qualquer lugar do planeta. Os males ali retratados, tendo individualismo, egocentrismo e polarização como recados mais evidentes de um enredo metafórico, são elementos capazes de gerar identificação em todas as plateias e em todos os idiomas, já que não há diálogos, legendas ou rubricas necessárias ao seu entendimento.
O título em inglês é só um reforço para a extensão global da obra, que une o Brasil de norte a sul, pela parceria da produtora gaúcha Druzina Content e da amazonense Petit Fabrik, de Humberto Rodrigues, diretor do curta. As duas empresas já estiveram juntas em outros projetos, como “Lupita”, que faturou um prêmio também em Gramado, na última edição do festival. As produtoras gaúchas KF Studios e a Bactéria Filmes completam os créditos de “Stone Heart”, “Coração de Pedra” em tradução livre.
O curta provoca no espectador a perspectiva de promover grandes transformações por meio de pequenos gestos, um mínimo se altruísmo, mas indica que estamos incapacitados para tanto. “Essa é uma das reflexões que o filme traz”, diz Luciana Druzina, produtora executiva do filme e diretora da Druzina Content.
“Tem várias camadas de leitura”, diz ela, em conversa com o blog. “Você olha uma vez, olha de novo, e percebe outras coisas. O Humberto queria muito contar essa história, e nós nos juntamos para conseguir fazer o filme de forma independente”, conta.
No caminho para colocar o curta de pé, as produtoras se submeteram a um longo processo de inscrição em um edital de financiamento do BNDES, que acabou sendo suspenso. Os recursos para financiar animação no Brasil já são escassos, ainda mais para produções voltadas a adultos. E não é que “Stone Heart” seja proibido para menores, ao contrário, há de fazer bem aos cérebros em formação. Mas seu foco está em plateias de todas as idades.
A Ancine, Agência Nacional de Cinema, como se sabe, está paralisada desde o início do governo Bolsonaro. E se cobrir os gastos de um filme normal já é um risco no atual cenário cultural brasileiro, as chances de pagar os investimentos aplicados em um curta obedecem a caminhos mais engenhosos. Mas Luciana acredita na sua cria, com razão.
Se para o governo brasileiro da vez o incentivo à cultura significa “mamata”, o mercado internacional reconhece o peso da economia criativa e oferece uma série de programas de financiamento que têm chegado aos produtores brasileiros por meio do programa Show Me The Fund. Da Pojeto Paradiso, instituição filantrópica de Olga Rabinovitch, a agenda do Show Me The Fund tem parceria com a Brazilian Content, Cinema do Brasil, para apoiar profissionais e projetos com recursos que somam mais de US$ 10 milhões anuais vindos de outros países.
Luciana acredita que há meios de pagar o filme por distribuição via Vimeo, serviços de streaming e pela própria monetição do YouTube, em uma etapa mais adiante. Durante o Festival de Gramado, o curta será exibido pelo Canal Brasil no dia 15, e ficará disponível no streaming da emissora até o dia 19 de agosto. No dia 16, o filme motivará a realização de um debate com o diretor, via YouTube.
A partir de Gramado, “Stone Heart” fará um giro por mais de 20 festivais internacionais. “E quem sabe a gente não pensa em fazer dele um longa, mais pra frente?”, sugere a produtora.
Durante a nossa conversa, Luciana enumerou uma série de projetos em andamento pela Druzina e suas parceiras, de longas-metragens a séries, de animação a live action, mostrando que o audiovisual brasileiro resiste bravamente a políticas de destruição do setor e da economia criativa, de modo geral.
A presença de empresas fora do eixo Sul maravilha (Rio-São Paulo) em grandes festivais como o de Gramado também vale como combustível para elevar o nível de otimismo e resistência dessa indústria.