Foco nas mãos de Seu Jorge: por que ‘Marighella’ incomoda tanta gente?
Se até com o acarajé servido após uma sessão especial de “Marighella” aos sem-teto na ocupação Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, resolveram implicar, é sinal de que o filme faz jus à liderança de bilheteria do cinema nacional na reabertura dos cinemas após a pandemia, né mesmo?
Por que o personagem incomoda tanta gente? A quem interessa que esse episódio tão recente da história do país seja calado ou esculachado? Antes mesmo da estreia, o filme de Wagner Moura foi alvo da milícia digital, com notas negativas dadas ao longa-metragem, em ação orquestrada nos principais sites de cotação de filmes.
Um indício da força da produção e do enredo ali narrado está na foto acima, capaz de expressar a potência de seu protagonista por meio do foco dedicado às suas mãos, com seus dedos longos dispostos em harmonia em um momento de celebração do elenco.
Em torno dessa figura, a equipe posava, naquela ocasião, para a entrevista coletiva que finalmente anunciava o lançamento do longa-metragem, após dois anos de adiamentos e não só pela pandemia, mas por obstáculos impostos pela Ancine, a Agência Nacional de Cinema, gerida pelo governo federal. A sessão ocorreu em uma sala do Conjunto Nacional, em São Paulo.
A imagem em questão é obra de Emanuela Padiglione Rossini de Godoy, estudante de História e, não por acaso, cria minha e de Marcelo Godoy, com quem me orgulho de alimentar uma longa e feliz parceria de vida, sobretudo no amor mútuo, aos filhos (com ninhada que se estende a Antonio, nosso caçula amado) e ao ofício em comum.
Cabe aqui um parêntese para o pai da fotógrafa: autor do livro “A Casa da Vovó — Uma Biografia do DOI-Codi”, lançado pela editora Alameda em 2014, ele faturou o Prêmio Jabuti como melhor obra de não ficção daquela temporada e também o Prêmio Biblioteca Nacional como Melhor Ensaio Social.
O pai de Emanuela, a autora da foto acima, tem longa experiência como repórter de assuntos de Justiça e Segurança Pública, e passou dez anos ouvindo, para o livro, agentes que trabalharam para a ditadura militar, com a missão de repreender, torturar e matar militantes como Carlos Marighella e seus aliados na luta contra aquele regime que calou o país por pelo menos 21 anos.
A foto da nossa Emanuela endossa um momento de triunfo, como deveria ser a imagem que Guilherme Boulos publicou em seu Instagram enquanto o diretor Wagner Moura garfava um modesto camarão seco, ingrediente que compõe o acarajé, ali servido no prato de plástico de uma quentinha doada pelo restaruante Acarajazz.
O deputado Eduardo Bolsonaro, no entanto, não demostrou pela imagem o mesmo orgulho ostentado em uma foto onde ele aparecia em figurino de árabe rico, ao lado da mulher e da filha. Não entendeu que aquilo simboliza um prato típico (e muito popular, termo que talvez não alcance) baiano, homenagem do MTST e do restaurante, incentivador da causa dos sem-teto, ao diretor, nascido em Salvador, e ao próprio Marighella, soteropolitano como Moura.
Dudu debochou de sem-teto que come camarão, em uma tentativa de desmerecer as causas do movimento, como se pobre, como disseram tantos críticos no Twitter, só pudesse correr atrás de osso.
Aquela frase chavão diz que uma imagem pode representar mais que mil palavras, mas o poder que uma imagem tem para trazer palavras à tona, com chances de revelar gente digna de ser chamada de humana e gente demônia, é igualmente louvável.
Já às mãos de Seu Jorge, convém pedir bênção para seguir adiante. O homem canta, atua, cozinha e ainda faz crochê. Que o talento dele nos inspire e se imponha frente a tanta mediocridade.
Ia me esquecendo: um brinde ao acarajé.