Por ‘Pantanal’, Globo põe ‘Um Lugar ao Sol’ sob trevas
Novela de Lícia Manzo atualmente em exibição na faixa nobre da Globo, “Um Lugar ao Sol” tem merecido aplausos entusiasmados de muita gente, incluindo este blog, mas parece sofrer um boicote da própria emissora. Definitivamente, a produção não faz jus ao seu título: na lista de prioridades da Globo, o enredo tem se contentado com a escuridão ou, quando muito, um lugar à sombra.
Não me lembro de ter visto um folhetim das nove da Globo mais escanteado pela própria casa. Se isso já não era novidade desde o lançamento da produção, que mereceu uma campanha pífia em relação à tradição dispensada às novas novelas, e teve seu rigoroso horário atropelado por jogos de futebol, agora a Globo joga a última pá de cal no próprio investimento.
Ao definir que precisa de mais prazo para lançar “Pantanal” com a segurança de que a novela não será interrompiada no ar por uma nova onda de Covid, a direção da Globo vem reduzindo a duração dos capítulos de “Um Lugar ao Sol” para que a história se arraste no ar até o fim de março. A trama “ganhará” duas semanas além do previsto.
Como tudo já está gravado –os cenários foram desmontados e boa parte do elenco está inclusive a serviço de outros trabalhos–, a solução foi fragmentar os capítulos para fazer a trama durar mais tempo no ar. O caso é que isso tem sido feito de forma absolutamente aleatória.
Além de afetar o hábito de um público acostumado à tradição de capítulos mais longos no horário, esse é um caminho que destrói toda a estrutura de capítulos escritos, gravados e pensados para serem encerrados com uma cena de suspense, o chamado “gancho”, a fim de fazer o público voltar ao sofá para acompanhar aquele enredo no dia seguinte.
Goste ou não da trama atual, esse princípio vinha sendo rigorosamente cumprido pela autora e pelo diretor Maurício Farias até a semana passada, quando a direção da emissora percebeu que o cronograma de gravações de “Pantanal” iria atrasar. A partir dali, todo o trabalho milimétrico de construção de cenas pensadas para desembocar no desfecho de cada episódio foi jogado fora.
As edições desta quarta (19) e quinta-feira (20) foram encerradas com cenas visivelmente criadas para o recheio dos capítulos, jamais para o suspense final, evidenciando uma reedição sem qualquer critério, só para tapar buraco à espera do berrante que vem aí.
Ao picotar os capítulos, a direção da Globo passa por cima do trabalho dos roteiristas, do diretor, e do próprio elenco, que gravou aquelas cenas sob outro contexto.
No cenário da grande troca de cadeiras executada pela Globo nos últimos dois anos, “Um Lugar ao Sol” é a última novela das nove planejada sob a gestão anterior, que se encerrou em 2020. Fica a sensação de que a nova administração quer fazer uma queima de estoque para valorizar a primeira mercadoria produzida sob seu comando.
Como telespectadora, só me cabe dizer que é uma pena, pois há uma sequência de questões delicadas competentemente apresentadas em “Um Lugar ao Sol” para fazer o público refletir. Há até quem arrisque dizer que a novela tem audiência bem aquém do saldo normalmente alcançado no horário porque faz a plateia pensar, diferentemente das tramas que chegam mastigadas ao espectador, gerando uma audiência passiva e relaxada, mas mais numérica.
Como entusiasta da teledramaturgia e de um bom texto, fica a percepção de que a Globo deixou de valorizar a qualidade de um enredo salpicado de grandes reflexões de vida.
A equipe de “Um Lugar ao Sol” gravou 107 capítulos em condições adversas, ainda no início do atrasado processo de vacinação contra a Covid, e se arriscou a colocar no ar um folhetim inteiramente pronto, sem brechas para as alterações normalmente possíveis em uma novela.
Agora mesmo estamos diante de um impasse, que é a inviabilidade de produzir mais conteúdo para protelar o fim da história, sem ter de sacrificá-la a esse ponto aqui observado.