Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Um Lugar ao Sol’: caráter falível de Stefany ofusca alerta sobre feminicídio?

Danilo Grangheia e Renata Gaspar em cena de 'Um Lugar ao Sol' / Reprodução Globo

Stephany, personagem que Renata Gaspar defendeu com grande dignidade, teve seu fim decretado no capítulo de quarta-feira (16) da novela “Um Lugar ao Sol”. O desfecho, uma tragédia anunciada que o espectador pode acompanhar por meio das várias camadas que compõem um histórico de abuso e violência doméstica, teve direito a cartela de advertência da Globo ao final do capítulo. O aviso alertava sobre a necessidade de denunciar qualquer tipo de agressão contra mulheres, especialmente quando vem do parceiro da vítima.

Desde o início da novela das nove, temos visto o desenrolar das ações de um abusador como alguém que muitas vezes é confundido apenas com um homem ciumento, supostamente inofensivo, apaixonado.  Lícia Manzo desenvolveu esse enredo com delicadeza, pouco a pouco, mostrando o vaivém da vítima diante de seu algoz, em geral manipulador das emoções de uma parceira frágil e cheia de carências.

Mas há poucos capítulos, desde que Stephany resolveu chantagear Christian/Renato (Cauã Reymond), justamente um sujeito que se dispôs a ajudá-la sem qualquer interesse que não fosse preservar sua  integridade física diante de Roney (Danilo Grangheia), o ex-marido psicopata, houve quem tenha protestado veementemente.

Falamos sobre o assunto no podcast Splah Vê TV, do UOL, nesta semana. A excepcional vilania assumida pela manicure nesses seus últimos dias enfraquece a bandeira por ela representada, que deveria ser o combate à violência doméstica e ao feminicídio, sem dar àqueles que mais precisam se conscientizar sobre o assunto qualquer brecha para achar que a culpa é da vítima.

A chantagem praticada por Stephany leva muita gente a ver o seu fim trágico como algo reservado a quem “procura confusão” ou que “não é flor que se cheire”.

Para atenuar essa sensação equivocada, um diálogo tenta salvar o ativismo contra o feminicídio logo após o enterro da personagem, quando Bárbara Sem-Noção (Alinne Moraes), ao ver a notícia na TV, comenta com a sogra, Elenice (Ana Beatriz Nogueira), o quanto seu pai, Santiago (José de Abreu), corria perigo ao conviver com pessoas violentas como “essa gente”.

“É, Bárbara, pra você, a culpa é da vítima”, reage Chris. A frase tenta arrefecer no público a ideia de que Stephany fez por merecer o seu fim. Afinal, não faltaram chances e avisos para que ela se livrasse do assassino.

Não importa que eu ou quem quer que seja que já tenha visto em Roney, desde a primeira cena, o sujeito violento que ele é. Para ser eficaz, o merchandising social implícito na trajetória de Stephany tem de furar bolhas e alcançar quem precisa ser alertado. Nesse contexto, pode-se achar que não é bom negócio “humanizar” a personagem com um caráter falível, mas tampouco seria eficiente traçar no seu perfil uma coitadinha que se distancie da vida real a ponto de emprestar à narrativa um tom de fábula.

Stefany é falível, sim, ou então não teria se deixado persuadir pelo jogo emocional que o criminoso vem lhe impondo há anos em uma relação claramente abusiva.

DA MOCINHA TORTA À VILÃ QUE DESPERTA COMPAIXÃO

Vamos agora tomar o contrário como parâmetro para aplaudir a coragem da autora em expor a dualidade humana. Temos desenvolvido ojeriza absoluta por Elenice desde que ela desprezou um dos irmãos gêmeos, ainda bebezinhos, lá no primeiro capítulo, lá no interior de Goiás.

Agora que ela teve revelado um diagnóstico de Alzheimer precoce em uma sequência de cenas irrepreensíveis de Ana Beatriz Nogueira e Fernando Eiras, é impossível não sentir compaixão por essa figura.

O público sempre torce pelo pior para o malvado, mas é surpreendente como esse destino de Elenice faz brotar no espectador um teste de tolerância e da nossa capacidade de perdoar. Há coisas que não se desejam nem ao seu pior inimigo.

É inegável a ousadia de Lícia Manzo ao tirar sua plateia da zona de conforto, sob o ônus de perder uma audiência interessada apenas na segurança do enredo previsível. Com todos os tropeços que o enredo possa ter (e eles brotam aos montes, até em função de uma produção realizada sob as restrições da pandemia), esse jogo que dribla o maniqueísmo e torna todo personagem da trama falível em algum momento é digno de aplausos porque nos coloca diante de espelhos nada aprazíveis, mas necessários para a busca de ações mais nobres no convívio social.

A novela entra agora em contagem regressiva para o grand finale em uma semana.

 

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  • LIGA
    Com uma trajetória repleta de pioneirismos, Glória Maria abriu seu coração como poucas vezes se viu ao comparecer ao centro do Roda Viva, na TV Cultura. Falou da superação da doença, de maternidade, de racismo, religião, jornalismo e turismo, sempre tendo como ponto de partida uma origem humilde e um mundo muito refratário às mulheres, em especial negras. Conduzida por Vera Magalhães, a entrevista, da qual tive o prazer de participar, já é a mais vista do ano no canal do programa no YouTube, com 97 mil visualizações em quatro dias, o que faz da edição a maior audiência do Roda neste ano, até aqui.
  • DESLIGA
    A tentativa do governo de Jair Bolsonaro de cesurar o filme “Como Ser o Pior Aluno da Escola”, de Danilo Gentili, endossa o título da própria produção no currículo de secretários e ministros envolvidos nessa polêmica que já peca pelo delay. O fato de o longa-metragem ter sido lançado há quatro anos e jamais ter sido notado da forma como é agora pelo secretário Mario Frias e companhia denota falta de informação, no mínimo, ou o caráter de alguma cortina de fumaça para encobrir outros fatos de relevância atual.

 

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