Episódios semanais ou temporadas inteiras: o novo velho dilema do streaming
POR FELIPE BRAGA
Poucos temas têm movimentado tanto a imprensa especializada americana quanto o debate sobre frequência na distribuição de séries. O que faria mais sentindo? Estrear uma temporada inteira ao mesmo tempo (para ser maratonada de uma só vez) ou lançar episódios em escala semanal? Por que essa discussão (que soa antiga) é tão atual? E o que ela tem a ver com a produção brasileira, e o desafio de
dar visibilidade aos seus produtos?
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Há quase 10 anos, comentando a novidade da estratégia inaugurada pela Netflix, um astro do cinema convertido em protagonista de série (e depois retirado de cena no contexto do movimento #MeToo) defendia o binge watching: “a audiência quer controle, quer liberdade. Se ela quer maratonar episódios, como tem feito com ‘House of Cards’, então devemos permitir que ela o faça. […] Dê às pessoas o que elas querem, quando elas querem, na forma que elas querem.”
Desde então, ganhou força a estratégia de lançar de uma só vez episódios de uma temporada —para que espectadores pudessem maratoná-los ao longo de poucos dias (ou horas). O número de títulos, no meio tempo, multiplicou. Há quem defenda, como o analista Rick Ellis, que nossas escolhas hoje são definidas pela influência de amigos e daquilo que nos impacta em redes sociais. Ele vai além: “o Zeitgeist da cultura pop produz um escopo de atenção que só permite que lidemos com um tanto de programação por vez. Em uma indústria em que há potencialmente uma dúzia de séries dignas de destaque lançadas por mês, soltar uma temporada inteira na maioria dos casos lhes dá chances de brilhar —mesmo que por um tempo mais curto.”
Difícil dizer. Para que isso dê certo, depende-se de uma estrutura de marketing cara e com estratégias bem definidas. Mas o que fazer quando ela não existe na medida necessária para entrar realmente na briga por atenção? Seja no mercado americano, seja no brasileiro, vão aumentando os casos de projetos que são disponibilizados nas plataformas —sem que sejam propriamente lançados. Estreiam sem que
muita gente fique sabendo e desaparecem em silêncio.
Com tantas plataformas operando, lançamentos de um fim de semana terminam por canibalizar os da semana anterior, com campanhas de marketing e operações de PR sustentando produtos com ciclos de exploração cada vez mais curtos. Ganha quem gritar mais alto e tiver as ferramentas comerciais (estrelas no elenco, narrativas acessíveis) mais potentes. Jogo jogado.
No Brasil, algumas séries vêm recebendo tratamento de grande produção, comprovando o valor estratégico das obras locais para as plataformas —mas não é realista imaginar que todo projeto nacional contará com a admirável operação publicitária que produtos como “Sintonia” e “Maldivas” (Netflix) vêm recebendo, apoiados nos nomes de seus talentos. E o restante das produções?
Seria problemático imaginar que apenas obras com apelo imediatamente popular (nada contra, são essenciais) poderiam sonhar com alguma visibilidade. Como se diante da falta de uma campanha de marketing potente fosse impossível se tornar conhecido e brigar por atenção. Infelizmente, no contexto atual, parece ser isso mesmo. Mas calma.
Voltar ao velho modelo de episódios semanais seria uma solução? Certamente não faria o desafio desaparecer. E seria um equívoco imaginar que um único modelo possa ser aplicado a todo produto. Mas talvez o debate seja pertinente, considerando um espectro mais diverso de obras audiovisuais.
O problema das estreias de temporadas inteiras é que elas aumentam a pressão por performance imediata sobre todos os lançamentos, inclusive aqueles sem um elenco estrelar ou narrativas tão obviamente abrangentes —e que, por isso mesmo, não dispõem de um orçamento de marketing competitivo. São projetos que poderiam ser chamados de pequenos ou médios, ou com um perfil que no cinema chamaríamos de “independente”. Soa estranhíssimo usar a palavra “independente” para falar de originais da Netflix, HBO, Amazon, Paramount e Disney, só porque seus orçamentos são menores… Mas é justamente neste tipo de obra que surgem inovações narrativas, personagens desconcertantes ou que representam uma sociedade em movimento.
E o que estes projetos que inovam na forma e conteúdo muitas vezes têm em comum? Eles conversam com a audiência. Comunicam-se com ela, em uma relação menos imediatista, provocando debates que terminam por expandir o seu alcance na imprensa, em redes sociais, entre amigos e colegas de trabalho.
A história da televisão tem exemplos de séries que precisaram de tempo para encontrar seu público, e que se comportaram (no chavão americano) como slow-starters, ganhando tração aos poucos. Há muito debate sobre se estes casos, que hoje enxergamos como clássicos, mas que demoraram tempo para conquistar a audiência (como “Mad Man”, “Breaking Bad”, “Sopranos”), são exemplos ou exceções —até
porque então os debates não aconteciam nas redes sociais, mas no bebedouro da firma. Os números contudo falam.
Quais números, na medida em que apenas as plataformas têm acesso aos dados de performance de seus filmes e séries? O Google Trends, como a turma do The Ankler demonstrou recentemente, é uma poderosa ferramenta. E ao analisar comparativamente as menções online de projetos com diferentes modelos de frequência (estréias de temporadas inteiras versus episódios semanais) os sinais são interessantes, principalmente quando comparadas as curvas de “Obi Wan” (Disney+, episódios semanais) com as de “The Umbrella Academy” (Netflix, temporada lançada inteira) e as de “The Boys” (Amazon, episódios semanais).
De acordo com The Information, “The Boys é um ótimo exemplo do Prime Video adotando uma estratégia de lançamento semanal para uma segunda temporada —e assistindo à sua audiência crescer e ser mantida por múltiplas semanas graças à mudança.” Atenção: nenhum dos projetos acima tem qualquer coisa de “pequeno”, “médio” ou independente —mas a comparação entre eles é indicativa de um comportamento, e sugestiva de uma lição para todos nós.
Nos lançamentos semanais uma conversa se estabelece entre público e narrativa. Seus temas e personagens são debatidos, o engajamento existe episódio a episódio —e não apenas com o impacto do lançamento de uma temporada inteira. Como os analistas reconhecem, esses estudos trazem uma importante mensagem: “boca a boca, como se vê, é sim algo muito real”.
Não à toa, as séries da HBO (que as lança com episódios semanais) dominam o debate online. Naturalmente, se a Netflix e (em menor medida, Amazon) continua lançando suas temporadas integralmente é porque isso faz sentido para eles. Não esqueçamos que as ideias de controle e liberdade são pilares desta estratégia inaugurada por Hastings e Sarandos.
Novos testes não param contudo de ser implementados por lá —e por aqui. A HBO Max local lançou seu “Pacto Brutal” em dois blocos, um de dois e outro de três episódios, e recentemente a Netflix teve uma estratégia especial para a última parte de “Stranger Things”. Isso para não falar da Globo, com experiências interessantes articulando estreias na grade aberta com o seu serviço de streaming.
Por ora, só as plataformas sabem dizer qual modalidade de lançamento funciona melhor para cada produto. Para projetos mais “populares” ou abrangentes talvez o despejar de temporadas inteiras nos sistemas, para consumo imediato, se demonstre a melhor opção. Enquanto para projetos mais nichados, com narrativas com maior potencial de geração de debate, os lançamentos semanais façam mais sentido
—porque permitem que uma conversa se estabeleça, dando tração ao produto mesmo sem as verbas publicitárias da primeira turma.
O importante de se notar (e jamais esquecer) é que lançar uma temporada inteira sem o orçamento de marketing necessário para entrar nessa briga de pesos-pesados por atenção pode significar sequer ser percebido. Parece óbvio, mas vale observar o quanto isso tem sido ignorado.
Algumas destas séries “menores” são hoje produzidas porque existem executivos de canais/plataformas dispostos a investir em ideias inovadoras de criadores, roteiristas e produtores —apesar dos riscos. Mas produzi-las talvez não seja o suficiente, e pensar estratégias igualmente originais para lançá-las, dando-lhes visibilidade e tempo para serem descobertas pelo público, se prove decisivo. Decisivo para a performance do conteúdo, mas também para o mercado das produções brasileiras, que compete por atenção no streaming com lançamentos internacionais e seus orçamentos de marketing sempre maiores.
(*) FELIPE BRAGA faz parte do rol de criadores das séries “Sintonia” (Netflix), “Lov3” (Amazon), “Samantha!” (Netflix) e “Latitudes” (WB), e escreveu os filmes “Marighella”, “Cabeça a Prêmio” e “Legalize Já”.