Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Não! Não Olhe!’ mistura faroeste, horror e ficção científica sob a perspectiva do homem negro

Keke Palmer em cena no filme / Divulgação

Por Gautier Lee (*)

 

“Não! Não olhe!”, o terceiro longa de Jordan Peele, estreia como uma aula de cinema e um clássico instantâneo. Em um mix de faroeste, horror e ficção científica, o diretor conduz uma narrativa cheia de tensões internas, piadas certeiras e um suspense constante que desafia a audiência.

Por ter escolhido um caminho narrativo mais convencional do que em “Corra!” e “Nós”, é fácil achar que Peele não abordou tanto questões raciais quanto em suas obras anteriores. No entanto, do título à direção de atores, é possível ver como o diretor-roteirista expressa e disserta sua experiência enquanto homem negro no mundo contemporâneo e enquanto cineasta.

Em “Não! Não olhe!” OJ Haywood (Daniel Kaluuya) é um treinador de cavalos que, junto a sua irmã Emeral (Keke Palmer), se vendem como descendentes do jóquei sem nome das imagens de Eadweard Muybridge. “Desde o momento em que as imagens podiam se mover, tínhamos pele no jogo”, é o lema do rancho Haywood, o único rancho fornecedor de cavalos para Hollywood cujos donos são pessoas negras. Após a morte inesperada e esquisita do patriarca da família, os dois irmãos se veem em difuldades financeiras e prestes a vender o pouco patrimônio que ainda lhes resta para a ex-estrela mirim Jupe (Steven Yeun). No entanto, um mistério mortífero paira, literalmente, sobre o rancho Haywood.

O título da obra é evocado logo no primeiro ato, quando OJ, após ter sido convencido por Emerald a tenta gravar e capitalizar em cima do objeto misterioso, é alvo de uma brincadeira feita por crianças vizinhas. Ao se ver frente ao perigoso, OJ se recusa a seguir o plano e tenta fugir, atitude comumente oposta àquelas de protagonistas, geralmente brancos, de filmes de horror clássicos. Isso é reflexo direto do individualismo pregado pela supremacia branca e que faz com que pessoas brancas, mesmo que insconcientemente, tenham a confiança de que podem sobreviver a tudo. OJ, enquanto homem negro, entende que não pode procurar pelo perigo, pois ele inevitavelmente irá encontrá-lo e seu instinto naturalmente é dar as costas e prezar pela própria sobrevivência.

A obra também acena para o discurso de independência e libertação do povo preto na construção de sua mitologia. Nos 135 minutos de duração, é fácil de identificar alguns signos recorrentes: Cavalos. O macaco. O mistério nos céus. O homem negro. O que todos esses elementos têm em um comum? Dentro, e algumas vezes fora, da narrativa, todos eles representam seres que, apesar das constantes tentativas daqueles que se consideram superiores, não podem ser domados.

O cavalo de OJ dá um coice inesperado no set de gravação. O macaco Gordy entra em uma fúria assassina. A criatura que vive nos céus segue apenas os próprios institos. E o homem negro… Ah, o homem negro sobrevive e retorna triunfante, montado em seu cavalo.

No entanto, o maior tema, e talvez também maior alvo da crítica que o filme traz, é, ironicamente, a própria arte cinematográfica. “Não! Não Olhe!” é construído com o amor fervente que todo estudante de cinema tem pela sétima arte, porém com uma técnica e construção artística que reverenciam as referências que Peele traz consigo, como Spilberg e Hitchcook, mas sem esquecer também das próprias origens do diretor como um gênio das esquetes de comédia.

A obra traz temas profundos e amplos, desde a marginalização do homem negro na indústria cinematográfica até a espetacularização midiática movida pelo capital. Tudo isso é embalado em uma estética belíssima, que explora a grandeza dos ambientes abertos, utiliza muito bem o CGI a seu favor e que culmina em um verdadeiro espetáculo cinematográfico que entretém, assusta e encanta. Tal qual o homem negro.

A diretora e roteirista Gautier Lee /

(*) Gautier Lee é diretora e roteirista queer negra e uma das fundadoras do Macumba Lab, um coletivo de profissionais do audiovisual negro no Rio Grande do Sul. Trabalhou em séries para a Amazon, Netflix, Globoplay e Comedy Central. Por fim, Gautier também levanta a bandeira em relação à luta de pessoas trans na sociedade.

 

 

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Cristina Padiglione

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