Após campanha com vítimas do Holocausto, Cao Hamburger mira agentes da intolerância
Em vez de apenas mapear e dar voz às vítimas da segregação, que tal investigar o que leva alguém à intolerância gerada por fascismo, nazimo, xenofobia e preconceito, de modo geral? Após retratar vítimas de ódio, o diretor Cao Hamburger volta seu olhar para o outro lado da questão, como conta em entrevista exclusiva ao blog.
Talvez você já tenha recebido por seus contatos do WhatsApp ou visto em outras telas os filmetes em que algum sobrevivente do Holocausto narra uma situação de intolerância, como se a história lhe pertencesse, mas não é bem assim: ao final do relato, a pessoa diz que aquele enredo não é dela, e sim de outro alguém, igualmente vítima de ódio e intolerância ainda nos dias de hoje.
Fruto da campanha Viver para Contar – Contar para Viver, os filmes são dirigidos por Hamburger, ele mesmo um herdeiro do Holocausto, que coloca vítimas de diferentes gerações e contextos para dialogar frente a frente, tendo como eixo a intolerância. A iniciativa é patrocinada pelo Museu do Holocausto de Curitiba e pela Unicef, com realização da produtora Elo Studios.
Os filmes também chamaram a atenção das TVs. Globo, SBT e Bandeirantes se interessaram em veicular as histórias em edições menores, de 30 segundos cada, sem cobrar pelo espaço oferecido.
A causa motivou Hamburger a voltar ao posto de direção, função que já não exercia fazia sete anos, tendo se dedicado mais à prática de roteiros nesse período. Ele falou ao blog sobre a experiência e adiantou que vem começando a criar um outro projeto em que pretende abordar a intolerância pelo outro lado, ou seja, dos perpetradores do ódio, e não das vítimas. Isso poderá ser um filme ou uma série, ainda não definiu. A ideia está em desenvolvimento.
A comunidade judaica tem a exata dimensão da importância que há em relembrar os horrores do Holocausto permanentemente, sem trégua para o esquecimento. É um meio de tentar evitar, ou ao menos frear tragédias como aquela. Com todos os filmes, livros, exposições e eventos lançados e organizados sobre o assunto frequentemente, o número de células neonazistas no Brasil saltou de 72 em 2015 para 1.117 em 2022, segundo estudo da antropóloga Adriana Dias, doutora pela Unicamp que morreu este ano.
No Brasil, existe a péssima cultura da anistia, que significa justamente esquecimento e que não pode ser confundida com antítese de revanche. O discurso de “vamos olhar para a frente”, sem que se revisite constantemente o passado, impede que erros cometidos antes sejam exemplarmente punidos, o que conspira a favor da repetição de tragédias.
Em recente texto publicado pela Folha de S.Paulo, o escritor Itamar Vieira Júnior resumiu bem o diagnóstico desse mal que nos aflige:
Hamburger fala sobre essa percepção e a comoção vivenciada durante a gravação dos filmes da campanha, que surpreendeu depoentes mais velhos no momento em que eles omaram conhecimento da presença, até então oculta, dos donos de cada história relatada por eles. “Eu mesmo me emocionei várias vezes. Passamos um dia inteiro gravando tudo”, conta Hamburger. A seguir, os principais trechos da nossa conversa:
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“O pessoal que criou a campanha me chamou pra discutir os filmes, e daí a gente foi selecionando as histórias mais legais. Os sobreviventes do Holocausto que moram no Brasil já não são muitos, então a gente foi selecionando de acordo com as histórias que a gente estava querendo contar. Eles foram muito disponíveis, abraçaram muito a ideia.”
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“Uma das ideias da campanha era homenagear esses que seriam os últimos, a última geração de sobreviventes do Holocausto viva. E achei que não tinha um jeito mais interessante de homenageá-los do que fazer as histórias deles conversarem com as histórias atuais, principalmente em um momento tão sombrio como o que estamos vivendo no Brasil. Essa coisa de aumento da extrema direita no Brasil e no mundo, de células nazistas, é chocante. Os números estão na página da campanha, contarparaviver.com.br, são dessa pesquisa da Adriana Dias, antropóloga que morreu há poucos dias.”
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“Sou descendente direto do Holocausto. Tanto meu pai como meus avós são sobreviventes do Holocausto, de Berlim. Eles saíram fugidos durante a Olimpíada de Berlim [1936]. Aproveitaram [aquele momento], viram que estava muto perigoso e fugiram, eles vieram do coração do nazismo.”
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TelePadi: No Brasil existe essa cultura de anistia, de não se punir ninguém pela ditadura, e agora vemos gente questionando por que lembrar dos mortos da Boate Kiss, por exemplo, um assunto na ordem do dia, na contramão do que a comunicade judaica faz com o Holocausto. Ao ignorarmos o passado, não conseguimos preparar o futuro. Isso te dá alguma aflição como herdeiro direto do Holocausto?
“É, tem essa coisa de ‘vamos olhar pra frente só’. O que eu sempre senti, mesmo durante a minha vida, e um pouco ouvindo meu pai também é… O peso que o Holocausto tem, de certa forma, ele é mais falado do que outras violências. Sendo brasileiro e sendo descendente de vítimas do Holocausto, eu sempre tive essa visão: do Holocausto a gente vê filme, livro, a gente fala, mas os outros genocídios são menos falados, não só genocídios, mas crimes de ódio. No Brasil, a escravidão e genocídio da população negra e indígena sempre foi menos falado, tinha essa coisa de ‘vamos olhar pra frente’ e o Holocausto tem essa capacidade porque provavelmente os judeus são na maioria branca e de melhor condição de vida.”
“Então, essa campanha me pegou por isso: de a gente usar essa visibilidade que o Holocausto tem para falar e ser solidário com os outos, que são atacados e dizimados até. Agora, a gente está vendo o que está acontecendo com os yanomamis e a história do Brasil é muito violenta, e também com as minorias, LGBT e tantas outras. Isso é um aspecto que eu acho interessante.”
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“Uma coisa que eu tenho pensado, e eu entrei nessa campanha porque eu já estava desenvolvendo um projeto, ainda muito inicial, é como falar do Holocausto e desses tempos de crescimento nazista, neonazista e fascista, e discurso de ódio, como falar disso de uma outra maneira. Eu tenho lido e estudado um pouco, e essa campanha também vai nesse sentido, é que a gente fala mais das vítimas. Todo o discurso é feito em cima das vítimas. Talvez seja interessante, para ter mais esssa reperucssão, a gente falar mais dos perpetradores, de quem realmente age assim, e o dos espectadores, que olham e não agem. Esses papéis se misturam.”
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“O que a gente viveu no Brasil, nesse peróodo, nesses quatro anos, e ainda estamos vivendo, não é que tenha acabado, a gente tem visto que está caindo a máscara, a gente está vendo pessoas que incentivam, a gente teve um governo de extrema direita que usou símbolos do nazismo, usou oficialmente, como aquele discurso do secretário da cultura e em muitas outras vezes, gestos de supremacistas brancos, a fala do presidente e do vice-presidente, que defende torturador. A gente está passando por um momento perigosíssimo, talvez seja hora de a gente ver e falar sobre isso, falar de quem faz, de como essas células surgiram, de como uma pessoa chega a esses pensamentos, como esse discurso tem influência na mídia, no governo. Esse é um outro projeto. Estou com a ideia de um filme ou uma série. A gente estava justamente pensando nesse projeto quando surgiu a campanha, uma coisa levou à outra, mas são independentes.”
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“Essa campanha serviu para a gente fazer a ligação das vítimas do Holocausto com as vítimas dos nossos crimes de ódio. Quando foi lançada a campanha, a gente não sabia exatamente o alcance que ia ter. Esse é um projeto da Agência Capuccino, de marketing digital e a Elos, produtora, com os patrocinadores, Museu do Holocausto de Curitiba, Unibes e Unicef.”
“[O filme ‘O Ano em que meus Pais Saíram de Férias’, obra sua, de 2006] tem retorno ainda. Esse filme tem a ver com eu estar neste agora, foi minha entrada e o mergulho que eu fiz na cultura judaica, nos meus antepassados, através do momento específico que meus pais passaram pela ditadura no Brasil. Então, de alguma forma, tem a ver com o momento que estamos vivendo hoje no Brasil, porque estamos falando de extrema direita, de Holocauto, intolerância e ódio, de ditadura e tudo. Esse filme, de vez em quando passam em escolas e eu vou lá conversar, ele está girando por aí.”
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“[Viver para Contar – Contar para Viver] É uma campanha mais digitral, foi criada pra ser dighital, mas a TV Globo, o SBT e a Bandeirantes gostaram da campanha e a gente fez uma versão de 30 segundos e as TVs veiculam gratuitamente.As conversas foram muito legais, porque naquele momento, eu ouvi também as histórias do Holocausto, ouvi e conversei bastante sobre as histórias de cada um deles. Os outros personagens ouviram também. Os personagens que são vitimas do Holocausto não sabiam que os outros estavam lá, mas eles estavam ouvindo, e tudo isso criou um ambiente, a carga emocional que está no filme foi criada a partir dessa estratégia, realmente eles ouviam muito, foi um dia de ouvir histórias, muitas vezes pesadas, outras mais emocionantes, enquanto um contava, o outro ouvia, mesmo que fosse escondido. E quando se encontravam, a empatia já estava tão forte que houve essa carga emocional tão grande, e pra equipe toda, eu fiquei emocionado várias vezes.”