Oscar de Melhor Atriz tropeça no mesmo canto da sereia que injustiçou Fernanda Montenegro

Antes de mais nada, é preciso dizer que a performance de Mikey Madison em “Anora” é muito e muito superior à de Gwyneth Paltrow em “Shakespeare Apaixonado”, filme pelo qual Paltrow levou o Oscar em 1999, derrotando Fernanda Montenegro, irrepreensível no longa “Central do Brasil”, do mesmo Walter Salles de “Ainda Estou Aqui”. Paltrow deixou para trás também outras atrizes que já se mostravam bem maiores que ela – o que o tempo só viria a confirmar – como Cate Blanchett, por “Elizabeth”; Meryl Streep, por “Um Amor Verdadeiro”; e Emily Watson, por “Hilary e Jackie”.
Nosso consolo é que Madison não é pior que Paltrow, ok, mas só a cegueira e os cacoetes inconscientes – ou até conscientes – da massa crítica que vota na premiação poderiam explicar a derrota de Fernanda Torres (sim, a melhor, e como diz o crítico Luiz Zanin Orichio no ótimo material que o Estadão publica nesta segunda pós-Oscar, “sem patriotada”) e de Demi Moore, cuja vitória também era esperada em função do histórico da atriz em contraste com um filme que escracha a indústria da estética perante o etarismo, em “A Substância” (que levou um Oscar de maquiagem).
Madison, 25 anos, tem potencial para chegar perto de ser uma Fernanda Torres, 59, daqui a 10 ou 20 anos? Pode até ser. Mas vamos lembrar que Fernanda, aos 20, já tinha uma Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, por “Eu Sei que Vou Te Amar”, o que nos leva a crer que a novata jamais alcançará a maestria de Torres.
A injustiça cometida com Fernanda, mesmo que fosse para Demi Moore, contabiliza ainda a falta de atenção com o eixo latino e o eurocentrismo da academia. Hollywood vem se submetendo a profundas transformações, mas ainda aquém do necessário. Há 26 anos, a gente até admitia que Fernanda mãe fosse preterida em favor uma Meryl Streep, de modo que a nossa revolta não foi a derrota propriamente consciente de brasileiro que sofre de complexo de vira-lata, mas a vitória da insossa Paltrow sobre nossa diva maior, dona Fernanda Montenegro.
A memória sobre a injustiça com Fernandona é mais forte que a perda da estatueta de “Central do Brasil” na categoria de filme estrangeiro, como o segmento era chamado na época. Por quê? Porque havia um “A Vida é Bela”no nosso caminho, e a fábula italianda de Roberto Benini em torno do Holocausto é inegavelmente genial. Não foi, portanto, uma premiação descabida. Se enfrentasse um concorrente menos impactante, em algum outro ano, é possível que “Central” já tivesse nos dado uma estatueta.
O QUE ESTÃO DIZENDO POR AÍ SOBRE A PREMIAÇÃO
Nos veículos do grupo Globo, o crítico Waldemar Dalenogare disse que seria difícil Fernanda ganhar a estatueta “porque no que diz respeito à valorização de uma atriz de um filme de língua não-inglesa ‘a academia está se abrindo, em um processo de internacionalização, mas [ainda] existe um problema de identificar uma boa atuação fora do eixo EUA-Reino Unido'”.
Quanto a Demi Moore, o especialista afirmou que a escolha por Mikey também aponta mais uma vez que a academia rejeita filmes de terror. E eu aqui complementaria: não se apega a produções de terror, mas curte um soft pornô com foco nas hipersexualização feminina.
Carolina Packer disse no Instagram que “Anora” ter ganhado “tantos prêmios é um escárnio de Hollywood”. A despeito da injusta premiação como Melhor Atriz – “A gente sabia que era um sonho distante porque eles não costumam premiar atrizes de língua não-inglesa. Agora, a Demi Moore, que também estava brilhante e vinha com um discurso importantíssimo sobre etarismo, sobre como as mulheres são tratadas pela indústria, e que sempre foi criticada por papéis sexualizados, perder para uma aspirante interpretando uma prostituta hipersexualizada ao extremo, o que é justamente o que critica o filme ‘A Substância’, é demais pra mim.”
Packer chamou “Anora” de “plot de Sessão da Tarde” e acrescentou que “infelizmente, isso dialoga muito com esses tempos que estamos vivendo”. “É impossível dissociar essas escolhas do momento político”.
Eu, particularmente, gostei de “Anora”, mas conhecendo alguns de seus concorrentes, logo descartei que fosse vencedor.
Zanin disse por mim tudo o que eu não soube expressar diante das premiações, ainda mais tendo visto “Anora” pouco antes da cerimônia, e “Conclave” na véspera. Não vi ainda “O Brutalista”, mas saí da sala de “Anora” com a certeza de que Madison não era páreo para Fernanda e o filme era inferior a “Conclave” e a “Ainda Estou Aqui”.
Eis o que Zanin escreve no Estadão: “‘Anora’ levar o Oscar principal, o de melhor filme, não é fato insignificante, mas, em termos de cinema, fica muito atrás de ‘O Brutalista’, ‘Conclave’ e ‘Ainda Estou Aqui’. Enfim, o que venceu não é o melhor. Acho que é facilmente esquecível, embora agradável de ver.”
Perfeito.
Zanin não usa eufemismos para classificar como “péssima a escolha de Mikey Madison”. “Sem patriotada: a melhor mesmo era a brasileira Fernanda Torres. Seria até compreensível uma vitoria de Demi Moore. Mikey é uma gracinha, tem charme, mas interpretar é algo mais do que gritar em cena. Mas isso deve vier com a maturidade”. E acrescenta que “Anora é “bem dirigido”, “tem ritmo e envolve a plateia com a história da garota de programa que se casa com um problemático herdeiro russo. Tudo isso é fruto da sensibilidade de Sean Baker, o melhor diretor. Prêmio ok, mas acho oprojeto de ‘O Brutalista’, levado aidante por Brady Corbet, superior.”
De toda essa discussão, fica a certeza plena de que “Ainda Estou Aqui” levou, como disse Walter Salles, a cultura brasileira ao mundo, por meio de sua história, sua literatura, sua música e seus cenários. Pena que a premiação como melhor filme tenha sido sonorizada pela organização da academia justamente com uma das raras canções gringas do filme, no caso, o clássico francês “Je t’aime moi non plus”, e não com Erasmo, Caetano ou Gal.
Pela péssima piada que o apresentador fez sobre o sumiço de Rubens Paiva na abertura da cerimônia, percebe-se que a equipe de produção e roteiristas da festa sequer viu o filme.
Mas, como diz Fernanda Torres: “Nós vamos sorrir”. E temos motivos para tanto.
“Ainda Estou Aqui” elevou o cinema brasileiro a um novo patamar, consolidando um caminho que tem sido percorrido há décadas, mas com muitas interrupções no ritmo industrial necessário ao reconhecimento global do produto, um ativo que movimenta o turismo, com todo os desdobramentos que isso implica em outros setores.
Em 99, quando “Central do Brasil” foi indicado ao Oscar e comoveu também plateias do mundo todo, a gente chegou a dizer tudo o que vem sendo dito agora, ainda mais pela breve chegada de “Cidade de Deus”, três anos depois, atribuindo ao longa de Fernando Meirelles um novo divisor de águas em vários aspectos.
Agora é torcer e trabalhar para que esses hiatos tão longos não destruam essa trajetória nem promovam atrasos culturais como aqueles que o país sofreu bem recentemente, quando nem ministério a cultura merecia ter no status de governança do país.