Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Rebelião em Manaus afetou edição final de ‘Dois Irmãos’, diz diretor

Omar (Cauã Reymond) em 'Dois Irmãos'
“Os acontecimentos em Manaus modificaram a forma de editar os capítulos finais. Senti a necessidade de incorporar à decadência, já posta no romance, a  reflexão machadiana de que ‘o progresso já nasce em ruínas’. A edição se tornou mais crítica e política ao refletir o tempo que passa e sua ideia de progresso.”
Assim o diretor Luiz Fernando Carvalho justifica de que forma a rebelião entre detentos em Manaus, com vários deles decapitados, interferiu no seu modo de finalizar a minissérie “Dois Irmãos”, que se passa justamente na capital amazonense, baseada no romance do escritor Milton Hatoum, também de Manaus e de origem libanesa, como seus personagens. A adaptação do texto é de Maria Camargo.
O TelePadi procurou Luiz Fernando a partir de uma entrevista sua a Mauricio Meireles e Lígia Mesquita, da Folha de S.Paulo, publicada no último sábado, 14 de janeiro, em que ele comentou que os acontecimentos desse início de ano em Manaus “modificaram a forma de editar os capítulos finais”.
Li sua entrevista à Folha e me chamou atenção um ponto que eu gostaria que você justificasse melhor: de que forma os acontecimentos em Manaus modificaram a forma de editar os capítulos finais? Também notei a terrível coincidência entre a tragédia nos presídios, iniciada justamente em Manaus, e a estreia de uma produção naquele cenário que só ganha holofotes quando alguma notícia ruim de lá se anuncia.

Gostaria de abordar essa “coincidência” e a forma como ela afeta a produção final.

Luiz Fernando Carvalho: São muitos muitos os desafios quando você se depara como a transposição para TV de uma literatura como a do Milton, que parte de um território e suas lembranças, que tem uma linguagem vigorosa e única. De um certo modo, ele é o nosso Pedro Nava de hoje. São coordenadas reais, que se misturam à sua invenção. Meu movimento inicial ao conceituar Dois Irmãos foi refletir sobre o tema da polaridade, do duplo, presente nos gêmeos, mas também na perspectiva política do país, gesto que me soa insistente e trágico. Faz uns dez dias estava editando a cena da morte de Halim, abatido sobre seu sofá cinza, mudo, cristalizado, perplexo diante das transformações que se iniciaram naqueles tempos, mas que chegam ao ápice nos dias de hoje! Na semana de estreia, assassinatos se multiplicaram nos presídios de Manaus, uma capital abandonada e praticamente esquecida, que entrou para o mapa mundi da tragédia da vida real e ficcional a um só golpe. Tudo se misturou na minha cabeça. Entendo a edição como algo móvel, dinâmico, como a vida. As improvisações continuam ali. Não trabalho com cartilhas. Meu olhar se interessa por estes acasos e espelhamentos.  Os acontecimentos em Manaus modificaram a forma de editar os capítulos finais, sim. Senti a necessidade de incorporar à decadência, já posta no romance, a  reflexão machadiana de que “o progresso já nasce em ruínas”. A edição se tornou mais crítica e política ao refletir o tempo que passa e sua ideia de progresso. A utilização de imagens de acervo histórico  que pontuam a narrativa memorialista estará mais presente. O Golpe militar foi associado à morte de Laval, etc. Nada disso foi conceituado por mim anteriormente, surgiu e foi se desenhando a partir das primeiras notícias que me chegavam de Manaus. Deste modo, a minissérie cada vez mais enuncia um enredo onde o tempo e a finitude das coisas são personagens fundamentais. Uma coisa espelhando a outra; uma coisa amando e, ao mesmo tempo, massacrando a outra, como os gêmeos do romance. Quantos reflexos! Quantas águas! O belo sempre diante do trágico! Minha vista turva, eu respiro e vou: rio abaixo, rio acima, até o fim.

Aproveito para questionar sobre uma curiosidade. Percebi uma certa obsessão por cenas com sapatos em primeiro plano, mais femininos, mas também masculinos, todos belos. Como confio que você não joga elementos à toa na narrativa, fico cá a me perguntar se há um motivo especial para tanto.
LFC: 
Eu sempre dou muito valor às extremidades. Elas são uma espécie de conexão com o mais profundo da terra e o mais alto dos céus. Estamos sempre cuidando para que, através de suas extremidades, os personagens se revelem. Os chapéus, os véus, os cabelos, os sapatos, o momento para os pés descalços, as mãos… Todas as extremidades que lidam com o espaço ao redor, seja ele tátil ou espiritual,  sempre foram  observadas por mim como ponto de conexão com as forças da natureza. As vestes preenchem o meio do caminho, mas quem diz quem realmente é aquele personagem são suas extremidades.
Luiz Fernando Carvalho dirige cena de 'Dois Irmãos'

Luiz Fernando Carvalho dirige cena de ‘Dois Irmãos’

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Esta semana, de hoje a sexta, a Globo exibe os cinco capítulos finais de “Dois Irmãos”.
E vale a sessão.

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Cristina Padiglione

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