Rogéria rompeu fronteiras e cativou a plateia em tempos politicamente incorretos
“O meu corpo vai putrefar em 24 horas; a minha alma é que tem que ser salva, e ela está sempre limpa’. O corpo apodrece depois que você morre, mas a alma tem que estar no apogeu.”
A frase acima, Rogéria disse a Mariana Godoy, ainda em abril, em seu programa de entrevistas na RedeTV! Falava então sobre a dificuldade que tinha em tocar a imagem do Cristo morto. Nascida Astolfo Barroso Pinto no Cantagalo, Estado do Rio de Janeiro, em 25 de junho de 1943, Rogéria morreu nesta segunda, 4 de setembro, em decorrência de uma infecção renal que a levou duas vezes à UTI.
Ainda em junho, esteve no foco das atenções do cinema, com o lançamento do filme documental Divinas Divas, de Leandra Leal, ao lado de Jane Di Castro, defendendo a autenticidade dos meninos que se vestem de meninas. “Você é trans?”, perguntou-lhe Mariana Godoy na entrevista de abril. “Não”, ela respondeu. “Posso te chamar de ‘travesti’?”, retomou a jornalista, então autorizada a tal tratamento. “Não sou mulher: eu me visto de mulher porque eu sou bastante homem pra isso”, repetia.
O fato é que se hoje uma novela pode abordar em detalhes um caso de transexualidade, muito deve a Rogéria. Décadas antes das bandeiras que pregam tolerância, ele, sempre tratado como ela, já se impunha no cenário do showbizz, ganhando o respeito até dos mais conservadores. Daí o título que gostava de ostentar, de “travesti da família brasileira”.
E se é verdade que coincidências não existem, pode-se tratar como honrosa despedida a revisita à sua primeira cena em novela, na última sexta, pelo canal Viva, quando Ninete, sua personagem, desembarcava em Santana do Agreste. Foi recebida por caloroso abraço de Tieta (Betty Faria), na novela homônima adaptada por Aguinaldo Silva da obra de Jorge Amado. De cara, provocava a curiosidade do fofoqueiro Amintas (Roberto Bonfim), desafiado por Osnar (José Mayer), que tinha fama de bem dotado, a descobrir o que aquela ilustre visitante tinha de misterioso.
De Aguinaldo, esteve ainda em Duas Caras, e multiplicaria sua participação em novelas com atuações nos enredos de Gilberto Braga, Paraíso Tropical (2007) e Babilônia (2015), além de Lado a Lado (2012), de João Ximenes Braga e Cláudia Lages.
Esteve no Sai de Baixo, na Grande Família, em Desejos de Mulher, Toma Lá, Dá Cá, Cilada, Amor & Sexo, Zorra Total, A Praça é Nossa, Você Decide, Pé na Cova e em uma infinidade de enredos. Como quem sempre soube rir de si, participou da temporada de 2015 do Tá no Ar. No último carnaval, fez a linha de repórter para a cobertura da folia na RedeTV!, sem jamais cair no constrangimento diante das situações mais constrangedoras.
Tagarela compulsiva, Rogéria mal se permitia entrevistar. Falava antes que algum acanhamento acometesse seu entrevistador, muitas vezes receoso quanto ao tratamento dispensado a questões sobre identidade de gênero. Homem travestido, gay e sem disposição para viver em armário, ela mesma se entrevistava.
Foi maquiadora na TV Rio, vedete no exterior e contracenou com Grande Otelo.
Há pouco mais de um ano, quando a Globo gravava Liberdade Liberdade, estive nos Estúdios Globo, ex-Projac, no Rio, entrevistando Andreia Horta. E, no trajeto entre o set e a portaria do complexo cenográfico, cruzamos com Rogéria, que aguardava para gravar cena de outra novela diante de uma igreja cenográfica. Dali acenou para Andreia, esfuziante, celebrando a própria existência da atriz. Encheu-a de elogios de uma maneira que só poderia fazer transbordar a autoconfiança da destinatária, que tudo ouvia com um sorriso de orelha a orelha, agradecendo e agradecendo. Foi cena de um minuto, dois, se tanto, que me comoveu pelo nível de uma sinceridade rara nos bastidores ególatras do showbiz. Parecia tão exagerada, mas tão autêntica em sua hipérbole, que me convenceu de imediato tratar-se de alma boa, sim.
E seria justo que o corpo, antes de entrar em estado de putrefação, virasse purpurina, estado de graça sempre expressado por ela. Essa é a imagem que fica.
Nunca houve uma mulher como Rogéria.