‘Os Dias Eram Assim’ emocionou e foi útil aos dias de hoje, mas tropeçou na forma
A Globo fecha hoje, com excessivos 88 capítulos, a novela chamada de “supersérie” “Os Dias Eram Assim”.
O final feliz do casal Renato (Renato Góes) e Alice (Sophie Charlotte) parece certo, após o enfrentamento de um calvário que durou 15 anos. O público, eu inclusa, espera que Vitor (Daniel Oliveira) morra, vítima da própria loucura, para assegurar que mocinho e mocinha de fato vivam em paz.
O fim de Nanda (Julia Dalavia) é certo: não havia quem sobrevivesse por muito tempo ao HIV naqueles primeiros tempos da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Antes que a morte chegue, a personagem terá direito a uma bela cerimônia de casamento na praia, com seu Caíque (Felipe Simas), selando uma das abordagens mais comoventes da história de Angela Chaves e Alessandra Poggi, estreantes como titulares de folhetim.
Escrevi maravilhas sobre o primeiro capítulo de Os Dias Eram Assim. Embarquei no segundo, no terceiro e no quarto capítulo, mas quase quase me arrependi de enaltecer aquele início. Em meio a um excelente argumento – o do casal que, mesmo sem se rebelar contra o regime militar do qual discorda, tem sua vida absolutamente afetada por aquele contexto – algumas cenas flertavam com o didatismo mal disfarçado.
Sequências tolinhas, mais pendentes para o discurso do que para a ação, quase botam a perder um argumento bom para uma época rica em acontecimentos dramáticos, com uma trilha sonora que se esbaldou entre Secos & Molhados e Legião Urbana, com pitadas precisas de Roberto Carlos, Elis Regina, Plebe Rude, Chico Buarque e Novos Baianos. Mas o maior problema de “Os Dias” foi de fato a longa extensão da narrativa. Faltou ficção para ocupar tantos capítulos.
Diante das comparações entre “Os Dias” e “Anos Rebeldes”, a própria Globo resolveu disponibilizar a minissérie de Gilberto Braga, de 1992, no GloboPlay. Em ritmo, é verdade, “Anos Rebeldes” dá de 10 na novela atual, mas o próprio enredo de militância política e luta armada pede um andamento mais frenético a “Anos Rebeldes”. O contexto do regime militar, por si só, não vale para comparar as duas. “Anos Rebeldes” é focada na luta armada, no propósito militante e organizado de afrontamento à ditadura, muito ao contrário dos personagens de “Os Dias Eram Assim”, que desorganizadamente se rebelam contra aquilo, sem qualquer planejamento lógico. O destino de Gustavo (Gabriel Leone) e de todos a sua volta é traçado como fruto de uma ação impensada de um amigo, Túlio (Caio Blat), que joga uma bomba na fachada da Amianto, a empresa de Arnaldo (Antonio Calloni). Não há paralelos com João Alfredo, o herói vivido em 92 por Cássio Gabus, ou com Helô (Cláudia Abreu), morta numa blitz policial, com documentação falsa na bolsa.
Enumero, a seguir, outras questões que merecem ser observadas:
- Influenciada por uma adolescente que assistiu aos primeiros capítulos comigo e depois abandonou a trama, concordei que uma história de tal densidade dramática não comporta capítulos tão curtos, dignos de comédia romântica. Quando o espectador começa a se envolver com o drama do personagem, bingo, sobem os créditos e o capítulo termina.
- Nesse ritmo, a tal “supersérie” tem obrigação de entregar tantos capítulos quanto uma mininovela, e acaba se estendendo para muito além do que a história pede. Vitor (Daniel Oliveira) dopou Alice, que dali a alguns capítulos será novamente dopada pelo mesmo Vitor, até quase sucumbir e ser salva pelo herói da história, Renato (Renato Góes). A trama do delegado Amaral (Marco Ricca) também se desdobra de modo muito repetitiva, o que só se explica pela extensão do tecido adiposo demandado por tantos capítulos.
- As cenas de tortura mostradas em ficção de TV nunca chegaram a tanto. As imagens envolvendo a personagem de Mariana Lima, violentada e torturada, são feito inédito na TV aberta, com destaque para a delicada abordagem em torno do trauma sofrido por ela, atormentada e acuada durante anos, e aos poucos resgatada da depressão pelo marido, o grande Josias (Bukassa Kabengele) e pela filha, Cátia (Bárbara Reis, bela atriz, conhecida desde a Doninha da 1ª fase de “Velho Chico”).
- A abordagem sobre o início da Aids, com todo o choque provocado pela presença do HIV entre nós e por tanta falta de conhecimento sobre sua forma de contágio e cura, por meio de Nanda, personagem de Júlia Dalavia, moveu e comoveu a audiência. Assim como em Forrest Gump, a vítima é uma mulher, reduzindo aí o estigma de “peste gay” atribuído à doença naquele primeiro momento.
- Deve-se reconhecer a ousadia da Globo em abordar sexo, drogas e outras temáticas relacionadas a comportamento de modo tão aberto, sempre freando o julgamento alheio, nadando contra a maré conservadora que se impõe no Congresso Nacional e nas ruas. A história de Rudá (Konstantinos Sarris) e Leon (Maurício Destri) aparece bem no núcleo mais liberal da história, apontando inclusive para a resistência inicial do pai, Toni (Marcos Palmeira), que abriga sob o mesmo teto, a ex-mulher, Munique (Letícia Spiller) e a atual, Maria (Carla Salle), o que logo resulta em cenas de ménage à trois.
- O tratamento indisfarçável ainda dado aos negros naqueles dias foi exposto pelas relações entre a família de Josias e o delegado do mal, Amaral, e de Arnaldo, além do espanto que Kiki (Natália do Vale) nutre pela confiança que a filha tem em Domingos (Izak Dahora), médico negro em hospital público.
- A direção foi um ponto notável, mas alguns recursos de pós-produção, usados de modo muito especial a princípio, passaram a ser aplicados para situações diversas já no fim da história, banalizando seus efeitos.E mais ressalvas relevantes não faço. A audiência respondeu com 21 pontos de média em São Paulo, superando “Verdades Secretas” e outras produções vistas quase no mesmo horário. Digo “quase” porque, ainda em seu primeiro mês, “Os Dias Eram Assim” ganhou uma janela mais cedo às quintas-feiras, o que a coloca em vantagem diante das antecessoras.