Posicionamento de Kevin Spacey é pura vantagem num mundo de assédio e hipocrisia
A ratificação de Kevin Spacey sobre sua “escolha” (palavra usada por ele) é, sobretudo, um ato que só traz vantagem ao universo dos atores.
Ainda que ele tenha escancarado seu posicionamento sexual no mesmo momento em que se desculpou por ter assediado um menor, décadas atrás, há que se considerar que raríssimos ainda são os astros do cinema e da TV com coragem de vir a público para assumir tal orientação, muito especialmente entre os homens.
Já que assédio e homossexualidade vieram à tona na mesma ocasião, peço que os indignados com a questão do assédio ao então jovem ator Anthony Rapp, em episódio ocorrido em 1986, façam só uma conta: já temos mais representantes do sexo masculino se desculpando por assédio abusivo (de José Mayer a Spacey) do que atores de cinema e TV, os mais conhecidos pelo grande público, falando abertamente de sua homossexualidade. Não que não haja gays nessa categoria profissional, longe disso, mas nenhum ofício é mais cruel com os homossexuais do que esse.
Não há quem pague preço maior por sair do armário, mesmo para aqueles que refutam a condição de galã. Embora a massa saiba cada vez mais discernir ficção de realidade, sem confundir o caráter do intérprete com os valores do vilão muitas vezes por ele representado em uma obra, a mesma percepção, segundo os cálculos da indústria do cinema e da TV, não vale para sua orientação sexual. É como se o ator gay saído do armário, disposto a passear por aí de mãos dadas com seu par do mesmo sexo, jamais pudesse novamente encantar a plateia na condição de pegador de garotas em uma série ou filme.
O mundo se chocou quando perdeu Rock Hudson para a Aids, em 1985, quando a doença ainda era associada ao termo de Peste Gay. Sim, Hudson, o homem que provocou um coro histérico feminino por anos a fio, no mundo todo, gostava de meninos. E daí? Daí que pouca coisa mudou nesses 32 anos, infelizmente. Ainda outro dia, Leonardo Vieira se viu escrevendo longa carta em que falava sobre sua orientação sexual, após ser “flagrado”, em tom de denúncia, aos beijos com outro rapaz.
Enquanto isso, atrizes que se anunciam gays circulam à vontade com seus pares e ostentam declarações de amor a céu aberto, sem risco de perderem papéis. Ao contrário: entre elas, ainda paira a imagem de um certo fetiche aos olhos do público masculino.
Indício de que essa associação ainda é muito forte aconteceu na mesma data da declaração de Spacey, quando sites internacionais anunciaram o fim da série “House of Cards”, primeira produção original da Netflix, que terminará no ano que vem, em sua sexta temporada. Protagonizado e produzido pelo ator, o título já tinha seu fim definido antes da confirmação da plataforma de streaming, mas foi oportunamente noticiado junto com o posicionamento sexual de seu protagonista – lembrando que o personagem tem lá suas investidas com outros homens.
Tudo bem que nosso Frank Underwood não seja nenhum Brad Pitt ou George Clooney. Sua carreira não depende tanto assim de homens arrebatadores para as mulheres, mas, nas contas dos profissionais especializados em cuidar da imagem de figuras públicas, o posicionamento de Spacey passa a ter um peso sobre os convites que receberá ou não daqui em diante.
Em compensação, a cada vez que um medalhão como ele sai do armário, o mundo se torna mais tolerante – dentro e fora da ficção -, tornando mais próximo o dia em que a orientação sexual dos galãs não mais afetará o encanto do público sobre suas performances nas telas.