Autor de ‘O Outro Lado do Paraíso’ precisa ver ‘Malhação: Viva a Diferença’
Em primeiro lugar, esperamos, do fundo da alma de quem torce por alguma lógica em histórias realistas, que Tônia (Patrícia Elizardo) não engravide graças à primeira relação sexual com o garimpeiro que acaba de conhecer em “O Outro Lado do Paraíso”. Na cena anterior do capítulo desta quinta, na novela das 9, não custa lembrar, a moça, que é ginecologista, lamentou a chegada da menstruação: “Droga, desceu pra mim”. E engravidar durante a menstruação, como se sabe desde as aulas de Ciências/Biologia do Ensino Fundamental, é mais complexo do que ganhar na Mega Sena.
O fato de ela sair do consultório para o bar, encontrar um estranho e dar corda até levá-lo para a cama, na sequência, pode até ser atribuído ao momento de alguém que sofreu uma desilusão amorosa e bebeu mais do que deveria. Uma mulher com pouca instrução saberia que essa seria uma ocasião improvável para fecundação, o que dirá uma médica especializada no assunto? Mas, de tão alcoolizada, Tônia nem faz questão do preservativo, como endossam as cenas de pegação.
Na cena em que descobre estar menstruada, Tônia atende a uma das moças do bordel e recomenda o uso de anticoncepcional (oi?) para evitar gravidez indesejada. Perdeu excelente oportunidade de falar sobre a necessidade do uso de preservativos, advertindo que métodos anticoncepcionais não inibem doenças sexualmente transmissíveis. Nesse momento, Walcyr Carrasco perdeu um gol de penalty sem barreira. Foi de chorar.
Não penso que novela tenha a obrigação de educar o povo, mas, já que exerce tanta influência sobre o comportamento do público, não custa buscar aqui e ali uma brecha para dar o recado sobre o que faz mal ou não deve se repetir em casa. Vai da competência do autor não transformar isso num Telecurso didático e pouco crível para o tom ficcional.
Glória Perez meteu a colher em tráfico de drogas, transexualidade, vício em jogo e o diabo, em “A Força do Querer”, sem perder a chance de explorar a complexidade de cada tema e de buscar a tolerância do espectador para cada assunto.
“Malhação: Viva a Diferença”, atualmente no ar, com a audiência lá em cima, é uma cartilha de utilidade pública por trás de uma história bem contada, com personagens bem formatados e críveis. Às cinco e meia da tarde, fala-se de racismo, gravidez precoce, homossexualidade, diversidade, amor livre, desigualdade social e outros problemas, de modo muito mais profundo e bem estruturado do que na novela das nove.
Veja: não sou contra o fato de fumarem em cena, e bem que me incomodava muito o fato de terem abolido o cigarro das novelas, como se ele não existisse mais na vida social real. Depois de algum tempo, as novelas voltaram a se permitir um cigarro em cena, mas sempre na boca dos vilões. Era realmente ridículo. Fumar não determina o caráter da pessoa. Tampouco deve ser rifado da dramaturgia por ser “mau exemplo”. Por isso, acho louvável ver o garimpeiro do bem fumando, ok. Mas o talento do ficcionista pode e deve contrabalançar o vício com outras informações de advertência, repito, sem cair no tom do Telecurso.
“O Outro Lado do Paraíso” está no retrocesso que a novela consegue fazer na abordagem de tantos assuntos antes tratados com muito mais competência pela dramaturgia da Globo.