Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

No ar pelo Viva, a ousada ‘Bebê a Bordo’ seria hoje ‘um bom seriado no Netflix’, diz autor

Isabela Garcia e Tony Ramos na novela de 1988

A menina pede para ver o pipi do menino. Ele não quer mostrar. “Deve ser pequeno, também não quero mais ver”, ela responde. O menino se sente ofendido e então ameaça mostrar. É , quando seu pai, Tonico, um Tony Ramos em plena forma para a comédia, intervém: “Não se atreva!” A menina então diz ao tio que já viu até o dele, enquanto ele tomava banho, “mas prefiro ver no vídeo com a tia Soninha”. Tonico corre para a cozinha para falar com a mulher (a Tia Soninha/Inês Galvão), e encontra a mulher apenas de sapatos altos vermelhos, nua – e não é que a gente a veja sem roupas, claro, mas ele menciona o fato e logo começa a se despir.

Corta.

Num ritmo frenético, quase HQ, bem pautado pela onda do videoclipe que fazia os anos 80 ferver, “Bebê a Bordo” tem surpreendido espectadores de todas as idades desde que voltou ao ar, pelo Canal Viva, no último dia 15, com exibição diária em dois horários: às 15h30 e à 0h30. O próprio autor, Carlos Lombardi, temia que a volta de sua novela mostrasse uma história datada, e agora confessa satisfação com a história criada há 30 anos. “Acho que a novela não envelheceu. O mundo envelheceu”.

Em entrevista ao TelePadi, ele fala sobre aquele momento e a certeza de que essa narrativa não caberia no padrão atual da TV aberta. “Ela seria hoje um bom seriado do Netflix. Se você quer a encarnação atual, seria melhor lá”, diz.

Com direção de Roberto Talma, o título foi exibido entre junho de 1988 e fevereiro de 89, às 19h, em sinal aberto (e TV paga nem existia aqui). No elenco, Tony Ramos, Isabela Garcia, Léo Jayme, Dina Sfat, Ary Fontoura, Guilherme Fontes, Guilherme Leme, Maria Zilda, José de Abreu, Armando Bogus,  Nicette Bruno e Débora Duarte, entre outros.

O ‘pai’ do ‘Bebê’, o autor Carlos Lombardi

Eis a nossa conversa:

TelePadi – Você estava  com medo que a novela se mostrasse datada?
Carlos Lombardi – Eu descobri que o mundo está datado, o mundo envelheceu muito, com essa coisa de que tudo não pode, tudo é indelicado… A palavra ‘indelicado’ já é de uma indelicada com a verdade. Tudo bobagem, a novela é leve, uma brincadeira com o nenê, todo mundo correndo atrás do nenê. Então, na verdade, eu acho que ela não envelheceu, acho que o mundo envelheceu muito, o mundo tá muito bobo, muito cheio de autossobrevivência, parece que todo mundo precisa saber onde fica a janelinha, onde fica a chamada de emergência. Os anos 80 eram anos em que começava a mudança daquela família nuclear, e o que a novela pega é exatamente isso.

TP – Por “família nuclear”, podemos entender aquela coisa de papai, mamãe e filhos?
Lombardi – Era a única maneira de ser família, as pessoas vão se agregando e construindo as famílias delas. Tem duas novelas minhas que tratam disso em épocas diferentes: ‘Bebê a Bordo’ e ‘Pé na Jaca’ (2006/2007), que é sobre o conceito de família estendida, a família escolhida e não a família obrigatória. E como são comédias e eu não dava a bula, as pessoas sempre acham que comédia é uma coisa boba, no sentido de que que pode até ser uma coisa boa de ver, inconsequente, mas, na verdade, acho que eu já estava fazendo o meu painel, percebendo que a gente estava numa sociedade que estava mudando tipos de relacionamento. E era uma época de todo mundo ser contra a ditadura. Eu me lembro que ainda tinha essa sensação de que o país estava unido e queria virar um pouco as costas para o passado e olhar pra frente. A gente ainda estava com o Sarney, continuava tendo censura, tinha que ir lá pra Brasília, enchia o saco, mas, mesmo assim, já era uma censura que ninguém achava legal. Hoje, me parece que as pessoas as pessoas são a favor de censura ou se comportam como tal.

TP – A chegada da Classificação Indicativa à TV, de alguma forma inibiu a criação na TV?
Lombardi – As pessoas confundem um pouco, a classificação já existia na época do Fernando Henrique, mas a gente não tinha problema com isso. Na época do governo Fernando Henrique, existia basicamente um padrão, mas não tinha essa coisa de levar tudo ao pé da letra, que depois se estabeleceu.

TP – O que pesou mais na restrição à liberdade de criação, essa fase iniciada no governo Lula ou os linchamentos promovidos pelas redes sociais?
Lombardi – Acho que cada um teve seu momento pra fazer merda, cada um teve sua contribuição. O Lula, como tinha prometido muita coisa pra muita gente, entregou para a esquerda católica esse departamento. Então, a gente andou pra trás. Eu me lembro muito bem, em ‘Quatro Por Quatro’, durante a campanha que elegeu Fernando Henrique, e no ‘Vira Lata’, ali em 1996, a gente estava à vontade. Já em ‘Uga Uga’ (2001) teve um cara, um secretário, alguma autoridade de baixo escalão e baixo calão, que tentou tirar a novela do ar, inclusive ela ficou proibida na classificação e aí, quando a classificação começou a ser levada muito ao pé da letra, no governo Lula, ‘Uga Uga’ não foi reprisada quando tinha que ser, e ela foi um dos maiores sucessos do horário das 7, até hoje não reprisou. Ainda nessa época, a gente sabia que não estava fazendo nada errado porque quando você não acerta a moral do público médio, a novela não dá certo. Por exemplo, tinha uma história ótima do Gilberto (Braga), todo mundo lembra, ‘O Dono do Mundo’, mas o problema foi que a leitura que o Gilberto queria era a leitura que a minha mulher fazia, que era uma mulher de classe A, publicitária, da personagem (Malu Mader) que disputava o marido com o trabalho. Quando você pensa na classe média urbana e classe média baixa, se o marido não está lá é porque está trabalhando, isso não é passível de crítica, é um elogio, porque significa que ele não tá nem no boteco bebendo nem batendo em mulher. Então, houve um descompasso entre o que a maioria do público pensava sobre o assunto e sobre o que a novela falava.

Tolerância
“A gente sabia quando errava a mão, também em outros casos. ‘Uga Uga’ foi muito bem e nunca ninguém ficou escandalizado porque viu a bunda do índio loiro. Era muito leve, tanto que hoje, estão levando mais a sério o ‘Bebê’, vendo que quando aparecia aquela coisa rápida e alegre, eu também estava dando uma opinião sobre as coisas. As minhas novelas sempre trabalharam com um conceito de tolerância, que eu acho fundamental. É as pessoas se acostumarem com os seus opostos, com os seus diferentes, e conseguir conviver bem com o que não é o seu lado. Eu sempre coloquei muito isso: as pessoas se desentendiam e depois elas podiam não mudar de opinião, mas elas podiam pelo menos conviver.  Isso sempre foi uma coisa que norteou os meus trabalhos.”

País em transformação
“O país mudou por vários períodos depois disso. Essa época ainda tinha censura oficial, mas era mais branda, porque nós estávamos no governo semi eleito, estava lá no governo Sarney.

Eu me lembro que em ‘Quatro Por Quatro’ (1994/95) eu já senti diferente, porque se houvesse alguma coisa que pudesse gerar ação na Justiça, o problema era da gente, a  responsabilidade era nossa, então, a gente pensava muito em tomar cuidado pra acertar o tom, o que não quer dizer que a gente acertasse sempre, às vezes a gente errava a mão, isso a gente foi tentando achar. Ainda bem que ninguém reclamou.

Quando você está trabalhando na TV aberta,  você sabe que tem limites e tem que lidar com o consumidor. Agora, revendo a novela, eu falo: ‘quantos períodos a gente passou’, e pensei o óbvio: ‘nossa, como eu tô velho!’. Fiquei também orgulhoso, me surpreendeu, o primeiro capítulo era melhor do que eu pensava. Eu estava também morrendo de medo de passar essa vergonha, eu era muito menos experiente. Seja como for, está bem escrito e bem interpretado, Tony estava fantástico”.

TP – Ela tem uma pegada de HQ, um ritmo bem mais ágil, principalmente para a época.
Lombardi – Ela tem uma influência, evidente, dos filmes do início do (Francis Ford) Coppola, ‘Vidas sem Rumo’ (‘The Outsiders’) e ‘Selvagem da Motocicleta’, os dois baseados nos livros da mesma autora (Susan E. Hinton), e também da estética dos videoclipes. A estética da Madonna está na Isabela (Garcia), ela é muito a imagem dos videoclipes da Madonna da época. O Rick e o Rey (Guilherme Leme e Guilherme Fontes) eram órfãos, mas não eram tipo Charles Dickens. Eles se viram, eles trabalham, a vida deles continua, eles fazem parte dessa tribo urbana mais fora da casinha.

TP – De onde você tirou a expressão ‘Levar um coelho’ como sinônimo de relação sexual?
Lombardi – Tirei da minha cabeça. Eu tinha ouvido isso uma vez ou duas, mas não era uma gíria de fato, e pegou. Era uma coisa divertida e sem culpa. O que eu queria era não associar sexo a coisa ruim. Dá pra pensar que existe, sem sofrimento e sem pecado

TP – ‘Bebê a Bordo’ hoje seria uma novela das 11 da noite?
Lombardi – Acho que seria um bom seriado na Netflix. Se você quer a encarnação atual, seria melhor lá.

TP – De fato, ela tem diálogos muito mais próximos da linguagem de séries do que do folhetim.
Lombardi – Tem, eu acho que sempre gostei desse padrão americano, do bate-rebate, mas só escrevendo foi que eu percebi que era diferente dos outros. Eu admirava muito o diálogo do Cassiano (Gabus Mendes), ele era o melhor dialoguista que eu conhecia, ele e o Geraldo Vietri. Então, acabei me inspirando muito neles pra fazer o que eu faço. Se você pegar ‘Nino, o Italianinho’, ‘Vitoria Bonelli’, as histórias de classe média baixa ítalo brasileira tinham esse toque do cinema italiano, de ser escrachada, mas que falava de coisa séria. Ele tinha isso, tanto que a Nair Bello fez muitas novelas dele. Eu herdei a Nair do Vietri.

TP – Sua última novela foi ‘Pecado Mortal’, no contexto dos anos 70, na Record, uma emissora que pertence a um grupo religioso, e já no contexto das redes sociais fervendo. É possível medir a distância entre esse último trabalho e ‘Bebê a Bordo’?
Lombardi – Eu não estou lá, não sei como está, mas eu não tive problema nenhum de interferência na Record. Obviamente eu perguntava as coisas: ‘o que pode?’ ‘O que pode aqui?’, ‘O que pode ali?’ Mas nunca tive interferência no sentido pesado. O chefe morria de medo dos casais, ‘tá ficando quente’, ele dizia. Eu falava: ‘mas você quer que eu escreva 160 capítulos, preciso de conflito, mas não se preocupe porque o casal central vai ficar junto, que eu gosto do casal também’. Eu falei: ‘não esqueça que eu sou um autor conhecido também por inventar bons casais’. O Raí e a Babalu (Marcello Novaes e Letícia Spiller em ‘Quatro por Quatro’ é só um deles, mas tem um monte. Eu estava seguindo a linha que eles faziam naquela época, de histórias policiais e eu adorei fazer ‘Pecado Mortal’, talvez tenha sido meu trabalho mais maduro. Foi quando eu senti que não tinha por que fugir do drama. Mantive o senso de humor, mas não era uma comédia, e como ela foi muito bem de crítica, foi uma coisa gostosa, porque eu era um autor que era bom de ibope, mas nem sempre de crítica, e foi a primeira novela que eu fiz de olho no Twitter. Eu via os comentários, acompanhei, me interessava. Não usava isso como se fosse um ‘group discussion’, porque público da internet que dá opinião ainda é muito nicho, mas era bom acompanhar e sentir como estavam reagindo. Hoje eu ouço que a Igreja (Universal) está mandando nisso e naquilo, mas eu nunca fiz história bíblica, não sei como é esse lado.

Comigo foram muito gentis, teve uma hora que eu entendi que não tinha mais lugar lá. Então, o que eu pedi foi para levar os dois projetos que eles não usaram, e eles foram gentis e me cederam, não tenho o que reclamar. Eu tive um ataque de ‘serei fino na derrota’ (risos).

TP – E podemos saber quais são esses projetos que você carregou? O que está em desenvolvimento hoje?
Lombardi – Eu estou desenvolvendo projetos, tô naquela fase de ir atrás, falando com possíveis compradores, tô rodando bolsa. Então, estou descobrindo quem quer o quê. Esse mercado mudou completamente. E já sinto claramente que a competição para a Globo, agora, são esses novos players.

TP – Você está assistindo ‘Bebê a Bordo’?
Lombardi – Eu deixo gravando e no fim de semana faço uma maratoninha.

TP – Você não tem a novela no seu acervo?
Lombardi – Não, nem tenho mais, essa nem sei… Eu fui dos pioneiros a escrever em computador, o editor de texto era uma coisa nacional, chamava Carta Certa, só depois é que o Collor abriu o Brasil para as importações, e foi a única coisa boa que ele fez. Eu salvava mil vezes as coisas porque de vez em quando sumia metade do texto. Era uma Carta Cilada, eu perdia metade do capítulo, e a pior coisa que existe é tentar reescrever o que você fez, você perde muito tempo. O ‘Bebê’ tem lá no arquivo deles (Globo), mas eu não tenho todos organizados.

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Cristina Padiglione

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