Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Acabou Chorare: Moraes Moreira, com um violão, valia por toda uma banda

Moraes Moreira, nosso poeta musical / Divulgação

Peço licença ao tema central do blog, relacionado a telas de tamanhos e conteúdos diversos, para brindar a Moraes Moreira, grande ídolo meu desde que eu tinha 13, e um dos responsáveis pela minha formação cultural. Por meio dele, fui descobrindo acordes, ritmos, obras e músicos que a indústria fonográfica nem sempre soube contemplar. O baiano, voz cadenciada da doce “Preta Pretinha”, foi encontrado morto em casa, no Rio, aos 72 anos. Abrimos esta segunda-feira (13) com gosto mais amargo do que a própria quarentena já trazia.

Uma vez me joguei nos braços dele, antes de um show que ele faria em um evento fechado do SBT, no Jockey Club de São Paulo, para justificar que o amava muito, mas não poderia ficar para a apresentação porque eu tinha crianças pequenas me aguardando em casa e deveria render minha funcionária. Eu estava de saída do salão quando dei de cara com ele, ainda no backstage do palco.

Moraes foi receptivo. Correspondeu ao meu abraço, grandão que era, braços compridos, aquela mesma figura de bigode e cabelão que a gente conhece desde as capas dos vinis dos Novos Baianos, nos anos 1970. Mas não disfarçou a surpresa, claro, porque ele talvez tivesse me visto outras duas ou três vezes na vida, em meio a milhares de pessoas que faziam-lhe coro em suas calorosas plateias. Que intimidade tinha eu com ele para me declarar daquele jeito?

Quem ficou atônita também foi a Keila Jimenez, então ainda parceira no Estadão, que testemunhou a cena e riu muito. Frequentemente, ela relembra este episódio como algo que ilustra meus arroubos e minha franqueza.

Vi Moraes tocar num pocket show em uma Bienal do Livro no Ibirapuera, num salão modesto, quase improvisado, ele, o banquinho e o violão. Fiquei impressionada com o que o cara era capaz de fazer só no “lerêlerê”, no “dig-dig-diguiró”, só no gogó, dedilhando meia-dúzia de cordas. Valia por uma banda inteira.

Vi Moraes em show com Pepeu Gomes, no extinto Palace, em Moema, quando juntos eles lançaram um disco de lambada, e tinha até uma das faixas, “A Lua e o Mar”, na novela “Tieta” (1989/90).

Vi Moraes no Tom Brasil em show memorável dos Novos Baianos, em momento revival da banda, com Baby, Pepeu, Paulinho Boca de Cantor, o poeta Galvão e o “leãozinho” Dadi, cujo vídeo copio abaixo.

Sorte ter testemunhado ao vivo a voz que conduzia, com Baby do Brasil (então Consuelo) a regravação do “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, a “Preta Pretinha”, de versos pacientemente repetidos a uma exaustão que nunca chega, de “Acabou Chorare”, do Brasil que vem descendo a ladeira, do “Pombo Correio”, de “Besta é Tu” e até da melosa “Sintonia”, uma balada brega que ganhava graça na voz dele (“Deixa eu penetrar na tua onda / Deixa eu mergulhar na tua praia / Que é nesse vaivém / Nesse vaivém / Que a gente se dá bem”).

Em 1982, na saudosa campanha da seleção brasileira na Copa da Espanha, era dele a música mais visceral a embalar nossa torcida por aquele time dos sonhos que o Paolo Rossi nos levou, “Sangue Swing Cintura”.

Foi nessa época que passei a buscar o repertório dos Novos Baianos, banda desfeita entre 1978 e 79. Fui movida por uma espécie de hipnose que Pepeu Gomes e Baby Consuelo causaram em mim quando eu tinha de 12 para 13 anos. De Novos Baianos, fui estudar João Gilberto, o pai musical de todos eles, referência máxima.

Não havia em casa influência alguma para trilhar esse repertório, ele simplesmente foi me chegando por meio de rádio FM e do Globo de Ouro, programa musical de playback da Globo, onde me encantei pelos cabelos coloridos, figurinos reluzentes e a guitarra de Pepeu.

Moraes Moreira não teve tempo de envelhecer. Vai embora sem direito a um funeral a sua altura, em razão do momento melancólico que nos impede de promover qualquer tipo de aglomeração, na contramão do que têm feito alguns poucos idiotas que certamente nunca cantaram “Preta Pretinha”, nunca correram atrás do trio elétrico nem sabem o que é empatia.

Moraes ao menos se livra dessa gente estúpida. Não são muitos, mas fazem um barulho desagradável, felizmente perecível e infinitamente menor que o acervo deixado por ele. Eis o que o torna presente sempre e nos ajuda a encarar a gincana da temporada, um reality show sem patrocínio da FIAT ou promessa de dinheiro na conta.

Quem se importa? Agora, bora cantar “abre a porta e a janela, e vem ver o sol nascer”.

 

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Cristina Padiglione

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