Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Algoritmo que impulsiona publicidade obedecerá a restrições para menores

É de conhecimento geral que quando você pesquisa o custo de uma geladeira na internet, passará dias a receber publicidade de geladeiras de todo tipo e custo. É o efeito do algoritmo na publicidade. Os anunciantes pagam para o Google e outras empresas de publicidade programática para distribuírem seus produtos de acordo com o comportamento de cada consumidor.

Isso acontece porque o Google e outros buscadores de pesquisa na internet, por meio dos links acessados por cada usuário, consegue mapear os interesses de cada um. Se você vê um vídeo de pet, vai receber outro e mais outro conteúdio similar, e se continuar a clicar neles, passará a ter a tela do celular tomada de bichinhos. Se gosta de ver imóveis à venda, tome uma enxurrada de opções de casas e apartamentos. Assim é com tudo que aparentemente lhe interessa.

Mas dentro desses mecanismos de rastreamento que faz de todos nós um participante confinado de um grande Big Brother às avessas, onde gastamos dinheiro – em vez de ganhar -, as crianças devem ser poupadas de terem seus comportamentos radiografados para fins publicitários.

Dei essa pequena volta para dizer que uma nova decisão do CONANADA, o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, núcleo abrigado sob o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, apertou ainda mais o cerco necessário à proteção de menores no ambiente digital.

Um ponto crucial de uma nova resolução estabelece que “os dados pessoais de crianças e adolescentes não devem ser utilizados para fins comerciais, como criação e definição de perfis de comportamento, consumo e segmentação mercadológica, tampouco para direcionamento de publicidade ou ampliação de seu alcance”. A regra endossa disposto na Resolução CONANDA nº 163, de 13 de março de 2014, que proíbe publicidade direcionada a crianças e adolescnetes, considerando a falta de maturidade dos menores para discernir conteúdo pago de não pago, ou o que é mera indução ao consumismo.

Outro destaque do novo texto, publicado no início de abril pelo Diário Oficial da União, observa que “qualquer tipo de mecanismo de vigilância e monitoramento digital de crianças e adolescentes, associado a ferramentas de automação e tratamento de dados pessoais, deve respeitar seu direito à privacidade e não deve ser utilizado de forma indiscriminada e injustificável”.

Para Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, a resolução chega em momento oportuno, quando tanto se discute sobre a responsabilidade que cabe aos administradores das redes sociais para distinguir as fronteiras entre liberdade de expressão e crime. No mesmo balaio, assistimos aos protestos do dono do Twitter, ops, do Xis, Elon Musk, contra o Supremo Tribunal Federal do Brasil, como se tudo fosse permitido no ambiente digital do país alheio (como não é no dele).

Não pode. E isso vale para menores e maiores, evidentemente.

Mas no que diz respeito a crianças e adolescentes, pesa o Estatuto dedicado aos menores de idade. No YouTube, quando se publica qualquer vídeo, é preciso responder antes se aquele conteúdo é ou não para crianças. Se for, adeus monetização: não há propaganda aceitável. O Google tem se pautado também pela política de restrições em operação em outros países, mas é evidente que a fiscalização sobre infrações no infinito universo da internet é um trabalho hercúleo. É como enxugar gelo, diriam alguns, mas é preferível isso a se afogar na inundação de equívocos e elementos nocivos diariamente despejados no maior portal de vídeos do mundo.

“Tem de haver prevenção e cuidado. Isso é um avanço na comunicação das plataformas e serviços digitais, em consonância com as obrigações que já estão no ECA, no Código de Defesa do consumidor”, explica Maria Mello. A nova resolução, segundo ela, traz artigos bem mais amplos que a resolução 163, com o desenvolvimento de uma politica nacional voltada a crianças e adolescentes no ambiente digital,

“Existe agora uma ênfase na exploração comercial”, aponta. A nova resolução elucida a proibição das plataformas de explorarem comercialmente as crianças, com procedimentos que pedem mais transparência nas relações com menores e elaboração de relatórios recorrentes em relação a moderação de conteúdo.

“Essa resolução é bem mais ampla, fala de direitos de crianças e adolescentes de maneira mais ampla, com responsabilidade compartilhada, principalmente de empresas de poder público, com proteção de dados pessoais e restrição a conteúdos violentos.”

“O X (ex-Twitter) juntou tudo o que há de pior em relação a essa negligencia, diminiu a proteção a conteúdos impróprios”, observa Mello. “Agora, temos uma clareza sobre o fato de que dados de crianças e adolescentes não podem ser usados para consumo e segmentação mercadológica.”

A resolução, publicada neste mês de abril no Diário Oficial da União, lembra de várias regras anteriores que embasam a nova decisão, como a de novembro de 2015, que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying); e o disposto na Lei 14.811, de 12 de janeiro de 2024, que institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares e
prevê a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente. Considera ainda o Marco Legal da Primeira Infância (Lei n° 13.257/2016), em especial o seu art.5º, que garante a proteção da criança contra toda forma de pressão consumista, e o Decreto n° 9.579 de 22 de novembro de 2018, que prevê o direito à publicidade adequada, além da Resolução nº 163 de 2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente.

O texto não despreza o fato de que as tecnologias digitais são vitais no mundo atual e proporcionam oportunidades para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, mas também impõem riscos de violações, exploração e abuso.

Diante das novas obrigações, fica definido que “será recolhida apenas a quantidade mínima de dados pessoais para os fins de uso do
serviço, cujo armazenamento deverá durar apenas o tempo necessário para a finalidade da coleta”. “O tratamento de dados de que trata este dispositivo deverá observar os mais altos padrões de proteção, segurança e procedimentos éticos, que devem estar alinhados à proteção integral e prioritária garantida constitucionalmente a crianças e adolescentes, garantindo a equiparação de dados de
crianças e adolescentes a dados pessoais sensíveis.”

“As empresas provedoras e prestadoras de serviços digitais aos quais crianças e adolescentes tenham acesso devem informá-los sobre o uso de seus dados, em linguagem simples, acessível, adequada e transparente.” E “sempre que o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes for realizado com base no consentimento deverá ser obtido de forma livre e prévia junto aos responsáveis, solicitado de
forma específica e destacada, para finalidades específicas e, sempre que possível, junto à criança ou adolescente, observado seu grau de maturidade e compreensão sobre os efeitos do consentimento.”

As empresas provedoras de produtos e serviços digitais utilizados por crianças e adolescentes, em funcionamento no Brasil, inclusive aquelas com sede no exterior, são responsáveis pela implementação e garantia dos direitos deste público, nos ambientes digitais por elas produzidos e
regulados.

A íntegra da resolução pode ser encontrada aqui.

OUTRO LADO

No último dia 8, o portal Na Telinha promoveu um fórum em uma das salas disponíveis na Assembleia Legislativa de São Paulo, para discutir a questão do veto à publicidade em conteúdos infantis, com ênfase para a TV aberta, meio que obedece a regras da radiodifusão e sobrevive unicamente de publicidade. Representantes do SBT e da Bandeirantes defenderam alguma flexibilização na lei. Os painelistas ali presentes defendem que a proibição à publicidade voltada às crianças e adolescentes inviabiliza o financiamenteo de conteúdos infantis.

Atualmente, entre as TVs comerciais abertas, apenas o SBT produz enredos focalizados em crianças, por meio de suas novelas, mas as últimas tentativas de veicular qualquer ação comercial com apelo infantil relacionada aos personagens em cena, seja na TV ou em canal associado à emissora no YouTube, foram punidas após denúncias apresentadas à Justiça pelo Ministério Público.

Recentemente, o SBT encerrou a faixa matinal de animações voltadas a crianças, optando por programas onde o merchandising é bem-vindo. A Globo encerrou esse ciclo há 12 anos, quando lançou o Encontro, então com Fátima Bernardes.

O Bom Dia & Cia. seguia ainda o formato consagrado por Xuxa, Angélica, Eliana e Mara Maravilha nos anos 1980-90, com um punhado de animações, a maioria importada, coalhadas por ações publicitárias na linha “peça-para-sua-mãe-comprar”, o que já não era mais permitido havia mais de década. Em contrapartida, dos anos 2000 para cá, a animação brasileira cresceu exponencialmente e abriu um mercado praticamente inexistente até então, graças a leis de incentivo criadas pela Ancine e financiamentos público-privados, encontrando espaço nos canais pagos, nos serviços de streaming e até na TV aberta, como segunda janela de exibição, inclusive no SBT, como aconteceu com o “Peixonauta”, produção da TV Pinguim originalmente feita para o Discovery Kids.

Convém ainda sublinhar que a publidade em conteúdos com apelo infanto-juvenil não é proibida. Tanto assim, que canais pagos do segmento, como o próprio Discovery Kids, além de Cartoon Network, Nickelodeon e Gloob têm intervalos publicitários em suas grades. O veto é sobre a propaganda dirigida a menores, sob o pretexto de não acelerar em cérebros mais vulneráveis a confusão entre recados pagos e recados genuínos, sem gerar compulsão consumista.

A proibição em questão teve início a partir de abusos como aqueles cometidos nos anos 1980 e 90, quando as apresentadoras acima citadas induziam à ideia de que todos deveriam ter um determinado produto – como a tesourinha do Mickey ou a sandalinha da fulana – para serem bem aceitos socialmente no ambiente escolar.

Ao mesmo tempo, o veto que também restringe a comercialização de produtos com apelo infantil, em especial em produtos licenciados a partir de personagens icônicos para as crianças, acaba atingindo cenourinhas e maçãs embaladas por determinada franquia. A mação da Turma da Mônica é um convite ao consumo saudável, mas como fazer uma legislação para a fruta e outra para vetar o miojo da dentuça de Mauricio de Sousa, alguém que sabidamente levou milhares de crianças a se interessarem pela leitura, ao longo de pelo menos seis décadas? Como criar normas que distinguam categorias de anúncios para crianças com personagens infantis, sem abrir brechas para distorções?

E por mais que haja pais cientes de seu papel junto aos filhos, sem querer delegar a tutoria das crias ao Estado, neste e em tantos outros assuntos, convém lembrar que o público mais vulnerável aos possíveis efeitos nocivos da publicidade são os menores cujos pais normalmente não estão presentes ao seu lado diante do televisor ou da internet, porque chegam tarde do trabalho e mal têm tempo de controlar o que os filhos veem ou consomem.

Há que se pensar fora da própria bolha para entender como reage o cérebro de uma criança, ainda que se alegue a existência maciça do abandono e da violência num mundo real nem sempre protegido pelo ECA, ou que as restrições hoje impostas nesse segmento estejam criando seres imaturos para lidar com o consumo responsável, como defendem os interessados em derrubar as conquistas alcançadas até aqui, no Brasil e em vários países.

Enfim, o debate é complexo.

 

 

 

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Cristina Padiglione

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