‘Amor de Mãe’ leva sala de aula à novela: professora Camila é nossa Merli
Não é fácil ganhar a atenção da plateia diante de uma tela ocupada pelo tema da educação. Diferentemente de saúde e segurança, que lançam mão de efeitos especiais para produzir sangue e muita ação, itens sempre valiosos no apelo ao olhar do espectador, o ensino normalmente não tem elementos visuais de grande impacto e é desafiado a ganhar o público pelo texto, pelos diálogos, pelo repertório mesmo.
Daí a dificuldade em colocar o assunto no foco das câmeras, em especial na dramaturgia, que tem de fisgar o público pela emoção. É preciso segurar a plateia na base da conversa, tarefa que poucos profissionais alcançam e, quando alcançam, provocam fascínio absoluto. Esse é o caso de “Merli”, série catalã disponível pela Netflix em três temporadas, protagonizada por Francesc Orella.
Tomara que eu não esteja enganada, mas a professora Camila, personagem de Jéssica Ellen que nos foi apresentada esta semana pela nova novela das nove da Globo, “Amor de Mãe”, pode bem ser nossa Merli, em versão adaptada para o subúrbio carioca, o que pressupõe até tintas mais fortes, já que o ensino aqui é bem mais deficiente e os estudantes têm condições sociais bem piores.
A vantagem, com perdão pela ironia, é que no caso do Rio de Janeiro, infelizmente, a sala de aula conta com o tal elemento extra para tensionar a plateia, já que um tiroteio na vizinhança é praxe na vida real.
No segundo capítulo da primeira novela de Manuela Dias, uma cena de dois minutos já valeu a novela inteira.
É o primeiro dia de aula de Camila, recém-formada professora de História. Assim como Merli, ela saberá ganhar atenção por métodos não ortodoxos, entretendo os alunos. A mestra entra na sala, onde encontra os estudantes em conversas entre si, sem foco algum. Pede atenção, pede silêncio, avisa que está ali, mas ninguém a nota. Estamos em uma escola pública, ambiente normalmente desprezado pelo poder público e culturalmente desorganizado.
Sem retorno, Camila começa a puxar uma batida de palma rítmica e vai se fazendo notar, até obter todos os olhares. Passa a cantar alguns versos de “É”, música de Gonzaguinha (aliás, tema de abertura da novela): “É, a gente quer valer o nosso amor / A gente quer valer nosso suor / A gente quer valer o nosso humor / A gente quer do bom e do melhor / A gente quer carinho e atenção”.
“Essa música que eu acabei de cantar, ela tem tudo a ver com a história do Brasil, Gonzaguinha fez essa música em 1988, quando o Brasil se livrou da ditadura. Aliás, alguém aqui sabe quando foi a ditadura no Brasil?”
Só uma aluna sabe quem é Gonzaguinha. Ninguém sabe bem quando foi a ditadura no Brasil. Mas o melhor texto ainda está por vir.
“Não existe uma história, existem muitas histórias”, diz a professora à classe. “Mas, se existem muitas histórias, quem sabe qual é a verdadeira? Quem sabe? Talvez ninguém saiba. E o nosso trabalho é continuar estudando pra gente entender como a gente chegou até aqui. Por exemplo, a história do Brasil, que a gente estuda aí nos livros, foi contada por quem? Pelos portugueses ou pelos índios?”
“Pelos portugueses”, responde um aluno.
“E a história da escravidão no Brasil, quem conta, os negros ou os brancos?
“Os brancos”, responde outra aluna.
“E vocês não acham que tem alguma coisa errada nisso?”, questiona a professora.
“Eu acho que a história é sempre contada por quem bate e não por quem apanha”.
“Exatamente”.
Traçar esse diálogo, em tempos de polarização, quando a direita acusa o ensino de ser “doutrina” de esquerda, nunca foi tão complexo. O texto consegue trazer a discussão à tona com base em fatos. É fato que os livros de História foram escritos pelos herdeiros dos brancos, portanto europeus, não indígenas ou africanos. E o cuidado de avisar que há muitas histórias e é preciso estudar todas elas, no início da cena, já dá o tom de quem pretende refletir, não impor conceitos ou opiniões.
A aula é interrompida por um tiroteio, em uma sequência chocante. Por mais que a gente ouça falar, toda semana, de criança morta por bala perdida dentro ou nos arredores de escola em comunidades cariocas, ninguém fora dali pode imaginar a sensação de ter uma aula interrompida pelo som aterrorizante de um fogo cruzado, como a cena mostra. A própria recorrência de episódios semelhantes no noticiário vai, de alguma forma, banalizando o fato aos nossos ouvidos, como se aquilo fosse aceitável.
Torço para que uma cena como esta encontre tanta gente interessada quanto a futilidade de Vivi Guedes e a maldade de Josiane provocava na novela passada. E se esta novela não alcançar os índices estratosféricos da trama anterior, é preciso entender que 25 ou 30% de uma audiência disposta a pensar vale mais do que 40% de telespectadores de duvidoso senso crítico.
INVESTIMENTO
Convém notar que a Globo tem ampliado sua atenção com relação ao ensino. Se quer se fazer notar como um produto mais bem acabado e reflexivo que as produções de outros canais e plataformas, promover educação é parte do investimento, é apostar em uma plateia mais pensante e menos dependente da fé ou dos sorteios da Telesena.
A série “Segunda Chamada”, transferida para um horário mais adequado nas noites de terça, endossa este caminho. Também ali, entre os dramas de cada aluno e professor, o texto pincela ensinamentos e preceitos válidos para a reflexão, sem resvalar no didatismo de um telecurso 2º grau.
A Globo também acertou ao inverter os horários, nas noites de terça, entre “Segunda Chamada” e “Filhos da Pátria”, outra excelente aula de história com proposta de reflexão emoldurada no humor (e onde também temos Jéssica Ellen, ali no papel da doméstica Lucélia, que foi escrava na 1ª temporada da série). É mais fácil seduzir o público a ficar acordado até mais tarde para ver uma produção cômica, indo dormir levinho, do que o contrário. É o tal negócio de rir por último, sempre melhor.
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