Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘A Ancine não pode acabar’, diz Fernando Meirelles, que não depende do governo

O cineasta Fernando Meirelles, sócio da O2 Filmes, uma das mais requisitadas produtoras nacionais/Divulgação

Sócio da O2 Filmes, produtora que nos últimos 12 meses só realizou produções bancadas pela iniciativa privada, sem verba vinda de leis de incentivo, Fernando Meirelles afirma que “a Ancine não pode acabar”, como ameaçou o presidente Jair Bolsonaro em sua mais recente declaração sobre a Agência de Cinema. “O audiovisual é o setor que mais cresceu no Brasil nos últimos anos”, disse o cineasta ao blog, em referência ao peso que a Ancine teve no crescimento dessa indústria.

“A Andréa [Barata Ribeiro, sua sócia] fez um levantamento na produtora que mostrava que nenhuma das nossas produções no último ano foi financiada com verba pública, mas isso não é casual, nós realmente direcionamos nossas produções para isso, acreditando que não é possível depender do governo. É um longo caminho. Hoje, a O2 virou uma produtora de séries. A publicidade já é segundo lugar no faturamento”, orgulha-se.

A O2 começou ainda nos anos 1980, sob o batismo de Olhar Eletrônico, sendo a primeira produtora de relevância na TV aberta, por meio de programas para a Abril Vídeo e o Programa Goulart de Andrade. Foi lá que nasceu o lendário repórter Ernesto Varela, personagem de Marcelo Tas, cujo primeiro câmera, sempre chamado por ele como “Valdeci”, foi Meirelles, seguido por Toniko Mello.

De lá até o início das leis de fomento para acelerar o audiovisual (cinema e TV) no Brasil, a produtora passou pelo menos duas décadas pagando as contas graças à produção de comerciais de TV. Agora que a coisa cresceu, a O2 aproveitou para se estabelecer com alguma independência, mas o caminho foi longo.

“Os critérios [da Ancine] são sempre muito técnicos”, defende Meirelles. “As produtoras são avaliadas também pelo número de festivais por que já passaram, pelas bilheterias de cada filme aprovado, pelo retorno que aquilo vai gerar, não há critério pessoal envolvido”, reforça o cineasta, único diretor brasileiro indicado ao Oscar por um filme totalmente brasileiro (“Cidade de Deus”, em 2004).

Série em 70 países

Luiz Navarro e Henrique Santana na série Pico da Neblina/Divulgação

Meirelles falou ao TelePadi durante a pré-estreia de “Pico da Neblina”, série toda financiada pela HBO Latin America, produzida pela O2, com direção de Quico Meirelles, seu filho. Mostrando um cenário hipotético em que a maconha é legalizada no Brasil (argumento que não se enquadra nas premissas de Bolsonaro para o uso da verba administrada pela Ancine), o título estreia no dia 4, no Brasil e em mais de 70 países, com dublagem em inglês e espanhol. A distribuição abrange toda a América Latina, Estados Unidos, parte da Europa e parte da África.

Como a HBO paga a conta, a série é de propriedade do canal, que é estrangeiro, e não da produtora, brasileira, cabendo à HBO sua distribuição internacional. A HBO é o único canal estrangeiro que tem o hábito de bancar produções no Brasil sem usar dinheiro vindo da Ancine, mas, para cumprir as cotas nacionais exigidas pela lei da TV paga, o que implica dar à produtora brasileira a propriedade do título e seu domínio sobre exportação e até a distribuição a outros canais após alguns anos, a HBO também aplica recursos da Ancine em outras obras, para que essas possam se enquadrar na classificação de “produções nacionais”.

O diretor Quico Meirelles durante as gravações de “Pico da Neblina”/Divulgação

Para ficar na mesma O2, a série “Destino”, com uma temporada feita em São Paulo, outra no Rio e outra em Salvador, tendo sido encerrada há mais de três anos, foi feita com verba vinda da Ancine e pertence à produtora de Meirelles.

Convém reforçar que ao contrário do que Bolsonaro diz, o fundo da Ancine não é composto por “verba pública”, ou não em sua maioria, que vem do Condecine, um caixa formado por meio de contribuição exigida das empresas de telecomunicações. É como se fosse uma espécie de CPMF do audiovisual, só que cobrada apenas do setor (operadoras de TV paga e telefonia) e de fato aplicada para os fins devidos: na indústria de TV e cinema, gerando empregos, cultura, conhecimento e autoestima (por procurar, quase sempre, gerar identificação do público na tela). O editor e documentarista Miguel de Almeida escreveu sobre isso para a Folha na última semana.

Há um artigo, de número 39, muito usado por excelentes produções nacionais da FOX, por exemplo, que pode ser tratado como originário de verba pública, já que diz respeito a impostos que canais estrangeiros deixam de pagar ao país, desde que realizem produções no Brasil, o que gera empregos, fortalece a identidade nacional e até gera exportação.

Como me disse o grande produtor Luiz Noronha, quando ainda era da produtora Conspiração, lá por 2013, o artigo 39 indica que os canais estrangeiros não têm de gastar um centavo a mais para produzir no Brasil. Só devem resolver se destinam seu dinheiro ao governo, que administra nossos impostos de modo muito equivocado, para dizer o mínimo, ou se transformam esses impostos em conteúdo brasileiro, produzindo empregos e audiência para eles mesmos, enxergando exatamente onde é aplicado o seu dinheiro.

Em tempo: Meirelles apresenta no Festival de Toronto, em setembro, a primeira exibição de “The Two Popes” (“Os Dois Papas”), filme feito para a Netflix, que tem previsão de estreia na plataforma em dezembro. O longa aborda a transição do papa Bento 16 para o papa Francisco, com Anthony Hopkins e Jonathan Pryce.

Cena de The Two Popes, com Anthony Hopkins e Jonathan, novo filme de Fernando Meirelles para a NetflixPryce/Divulgação

 

 

 

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