‘Segundo Sol’: autocrítica de Beto Falcão ajuda a educar senso crítico do público
Discretamente, João Emanuel Carneiro tem feito um trabalho capaz de alimentar o senso crítico e os ouvidos do brasileiro para a música, por meio da novela “Segundo Sol”. Não que isso seja o ponto central da trama da Globo, mas cabe notar como as críticas de Beto Falcão (Emílio Dantas), personagem supostamente morto, ao repertório de sucesso do próprio Beto Falcão, são sustentadas por argumentos que induzem o público a reparar na pobreza embutida em rimas fáceis que normalmente fazem uma canção grudar nos ouvidos da gente feito chiclete.
A visão aí explorada pelo autor é praticamente um merchandising cultural, em favor de um olhar mais apurado das grandes plateias.
Não é de hoje que Miguel, nome adotado por Beto, rechaça o valor musical de “Axé Pelô”, o hit que o fez famoso, e de canções do gênero. Por várias vezes, o personagem protagonizou cenas em que contesta a idolatria de amigos e fãs à música de Beto, tendo até sido chamado de “invejoso”, por tentar destruir a imagem do artista que se tornou mito após a morte precoce.
Ao partir para criações na linha um-banquinho-um-violão, com melodias mais trabalhadas e uma letra que dispensa o ouvinte de enfiar sorvete na testa, Beto tem se mostrado mais satisfeito em fazer o que gosta – música – sem se curvar ao “gosto do mercado”, digamos assim. Como um quase anônimo, experimenta a sensação de despertar interesse no público com o vídeo de sua nova música, que viralizou na internet e receber uma bela crítica de um renomado crítico musical de Salvador, alguém que nunca se rendeu aos hits de Beto Falcão.
O autor tem sido muito competente em abordar o assunto com a delicadeza que isso exige. O olhar do morto-vivo Beto Falcão permite que esse senso crítico cutuque o espectador por meio da autocrítica do personagem, o que é genial em se tratando de uma novela, a mais popular das narrativas brasileiras. Não há plataforma mais eficaz para fazer qualquer recado chegar à massa.
Ao optar pela autocrítica de Beto, Carneiro escapa da cilada de cair na arrogância intelectual de quem defende que músicas muito populares não têm valor cultural – até porque, muitas canções de grande valor alcançam o êxito de serem populares – ou que popularidade e qualidade não se casam, outro equívoco.
O caso de Beto Falcão é muito parecido com a morte real de Cristiano Araújo, cantor sertanejo que perdeu a vida em 2015, em um acidente de automóvel, aos 29 anos. Bastante popular em um determinado nicho, Cristiano virou ídolo nacional em questão de horas, assim que sua morte foi anunciada, como aconteceu com Beto. Não custa lembrar que Zeca Camargo foi muito mal interpretado ao abordar o assunto em uma crônica que lhe rendeu até uma pendenga judicial com a família do cantor.
Não é fácil mexer com essas paixões que motivam milhões de fãs, mas, certamente, o uso de uma figura ficcional para levantar a bola do assunto torna o debate mais racional, e por isso, mais produtivo.