Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ao fim de ‘Amor de Mãe’, que Lurdes viva na nossa memória afetiva

Regina Casé como Lurdes, heroína como pocas em telenovela, e seu rebanho: Jéssica Ellen, Chay Suede, Thiago Martins, Nanda Costa e Juliano Cazarré/ Reprodução Globo

Entre todas as privações que a pandemia nos trouxe, sempre lamentei que a Covid tenha atravessado o caminho de uma novela disposta a ousar, com aulas de história e militância ambiental pinceladas no meio dos conflitos desse enredo coroado por uma heroína capaz de espelhar tantas mulheres brasileiras. Se tinha de aparecer, o raio do coronavírus poderia muito bem ter pegado pela frente uma novela como aquelas que só ocupam espaço no ócio do nosso pensamento, sem nada a acrescentar.

Na volta de “Amor de Mãe”, que terminou nesta sexta (9), matamos a saudade de Lurdes, personagem que não poderia ser ninguém mais senão Regina Casé e que há de habitar nossa memória afetiva na galeria das melhores heroínas de novela.

“Amor de Mãe” honrou o título sob todos os aspectos. Teve mãe de sangue, mãe de criação, mãe que enlouquece pela cria, seja de próprio ventre ou não, mãe que enfrenta a dor da perda, mãe que sofre pela perda por escolha própria, e todas elas com algo em comum além do amor: a culpa.

Sim, a culpa nos acompanha. Não a culpa por eventuais crimes, como Thelma deveria sentir, mas a culpa por todo e qualquer infortúnio na vida do filho, como se viu na cena em que Lurdes se pune, diante de seu Domênico (salve Chay Suede), reencontrado após 20 e tantos anos, por tê-lo deixado sozinho com o pai aos 2 anos de idade. Aquilo é culpa do amor de mãe. Preciso, perfeito.

Mas é inevitável sentir que a narrativa tenha se azedado com o retorno da história de Manuela Dias condensada em 23 capítulos, em vez do dobro disso, como aconteceria em seu percurso normal, sem pandemia. Não que isso tenha estragado o folhetim, mas o ponto da massa desandou.

Escrevo isso ciente de todo o esforço que foi, para a autora, diretores, sob o comando de José Luiz Villamarim, e elenco, terminar a trama naquele regime de mil precauções para evitar contaminações. Atores foram confinados para gravar cenas de beijo, cotonetes roçaram as narinas de todos muitas vezes, em busca de diagnósticos de segurança, e milagres de pós-produção foram operados milimetricamente.

Diante das circunstâncias, o resultado é heroico, que fique claro. Mas a escalada da piração de Thelma, em mais um show de Adriana Esteves, foi muito acelerada para 23 capítulos, ao passo que a espera de Lurdes no cativeiro se estendeu desproporcionalmente aos demais acontecimentos, novos romances e separações.

O sofrimento também foi longo demais para o triunfo ligeiro do reencontro com os filhos.

A necessidade de seguir o ritual de novela contemporânea realista trouxe ainda dor extra a um enredo suficientemente sofrido, e vimos personagens padecerem de Covid, profissionais da saúde sobrecarregados e muitas máscaras a desfilar em cena, como já víamos, exauridos, há um ano nos noticiários da vida real.

Nada disso subtrai o mérito do plot da mulher que teve um filho vendido pelo marido e, na sua busca incessante, afeta a vida de outras duas mulheres pelo mesmo tema que lhe é caro: a maternidade. O enredo do menino morto em um incêndio e trocado por outro garoto por obra de uma traficante de crianças é substancialmente instigante.

Louve-se ainda todo o trabalho de figurino e caracterização, do vilão que usa cores claras e solares, Álvaro da Nóbrega (Irandhir Santos), em contraposição ao seu antagonista, Raul (Murilo Benício), que só usa preto.

Note-se ainda a libertação paulatina do mocinho Domênico/Danilo, que começa a novela encapado em mangas de camisas compridas, escondido por trás de bárbara e óculos, e vai exibindo os braços e o rosto conforme vai ganhando a autoconfiança que a mãe adotiva sempre o inibiu de adquirir.

Que fique a figura de dona Lurdes a nos inspirar nas lutas do dia a dia, o discurso de Camila (Jéssica Ellen) a valorizar a educação e as escolhas da vida, e a certeza de que amor de mãe não se explica, mas também de que filho não é bicho de pelúcia e tem voz própria.

 

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Cristina Padiglione

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