Ao tratar Bolsonaro como patrão, Silvio Santos confunde estado com governo
Criticado por receber Jair Bolsonaro em sua casa, no bairro do Morumbi, em São Paulo, para lhe entregar um selo dos Correios em homenagem aos seus 90 anos, Silvio Santos voltou a dizer que o presidente da República é o seu “patrão”. Para o dono do SBT, Bolsonaro, no papel de chefe do executivo, teria o poder de lhe assegurar a concessão de seu canal de TV.
Senor Abravanel trata a figura física presente no posto público como se ela fosse dona, e não ocupante passageira daquela cadeira, representante de um governo. Além disso, a aprovação, renovação ou cassação de uma concessão pública de TV não é um ato isolado do presidente da República. A decisão depende de votação no Congresso e pode ainda esbarrar em trâmites do Judiciário.
Mas Silvio Santos, que recebeu a concessão em tempos de ditadura militar, e por mais de uma vez já atribuiu nominalmente ao presidente João Figueiredo a conquista de sua TV, não consegue ver essa relação de outra forma. É como se não confiasse nas transformações operadas pelo regime democrático nos quase 40 anos que se seguiram à canetada de Figueiredo.
Dez anos antes de receber sua concessão, no ápice da repressão, Senor Abravanel também assistiu à derrocada da TV Excelsior, fechada por conflitos entre o governo militar de Emílio Garrastazu Médici e a família Simonsen. Por razões financeiras, e não políticas, como foi o caso da Excelsior, testemunhou ainda a concessão cassada da Tupi, o que lhe abriu espaço para a TVS e para a Manchete, de Adolpho Bloch.
Na cabeça de Silvio Santos, se um presidente pode lhe dar uma TV, também pode lhe tomar seu brinquedo.
O comportamento de Bolsonaro contribui para a cristalização dessa ideia, como mostram as ameaças que o presidente tem feito à Globo quando menciona a possível não renovação da concessão dos Marinhos em 2022, época em que vencerá o documento atualmente em vigência. Cada aprovação vale por 15 anos. Bolsonaro já sugeriu que poderia, em uma canetada, suspender a concessão da líder em audiência, como se a sua palavra fosse soberana frente ao Congresso e ao STF. Não é.
A nota distribuída por ocasião da visita de Bolsonaro já havia sido divulgada em maio passado, quando Silvio desmentiu que teria sugerido nomes para suceder Luiz Henrique Mandetta no ministério da Saúde, e impressiona pelo nível de subserviência de alguém que deveria impor seu poder como dono de um veículo de comunicação de massa.
Diz o texto:
“A minha concessão de televisão pertence ao governo federal e eu jamais me colocaria contra qualquer decisão do meu ‘patrão’, que é o dono da minha concessão. Nunca acreditei que um empregado ficasse contra o dono, ou ele aceita a opinião do chefe, ou então arranja outro emprego”.
Antes a frase fosse apenas uma reverência retórica ao presidente que ele quer agradar. Entre 1981, desde que o SBT nasceu, até o segundo governo FHC, Silvio abria espaço na programação de domingo, seu dia mais nobre, para a Semana do Presidente. Narrada por Lombardi, a edição trazia, em tom bajulatório, as ações positivas do chefe da nação na semana que havia se fechado no sábado.
Não se tem notícia, no entanto, de tamanho cerceamento ao jornalismo do SBT como acontece atualmente.
Mas entre 1997 e 2005, houve um apagão na produção do departamento, que foi reduzido a um noticiário batizado pejorativamente como Jornal das Pernas, por exibir duas apresentadoras sem bancada, sentadas, a exibir seus belos pares de pernas. Boletins informativos sem reportagens completavam o menu, feito só para contemplar a legislação da radiodifusão, que exige ao menos 5% de produção jornalística de um canal de TV aberto.
Durante o governo Collor, o SBT teve ativa participação do TJ Brasil e Jornal do SBT na cobertura dos escândalos que resultariam no impeachment, conteúdo que se estendia ao “Jô Onze e Meia”, quando Jô Soares lá comandava o seu talk show.
Antes disso, Boris Casoy já se fazia notar como o primeiro âncora de TV no Brasil que inseria comentários analíticos e interjeições como o bordão “Isto é uma vergonha: É preciso passar o Brasil a limpo” no meio das edições do TJ Brasil.
E Lillian Witte Fibe, não custa lembrar, foi transformada em apresentadora pelo SBT, após a Globo mantê-la quase um ano na geladeira, coincidentemente depois de uma entrevista em que suas perguntas expuseram a insegurança da então ministra Zélia Cardoso de Mello sobre os desdobramentos do famoso Plano Collor. Witte Fibe era uma comentarista na Globo e foi alçada à bancada justamente no SBT, ainda na era Collor.
Silvio vem pisando em ovos com Bolsonaro desde antes de o seu genro Fabio Faria (PSD-RN) ter assumido o ministério das Comunicações, pasta reaberta só para contemplar o partido do marido de Patrícia Abravanel.
Em maio, quando veio à tona o conteúdo da reunião ministerial onde Bolsonaro teria insinuado que queria ter o controle da Polícia Federal, fala à qual deu outra interpretação, alegando se referir a sua segurança pessoal, Silvio mandou pessoalmente suspender a edição do SBT Brasil do sábado, dia seguinte à divulgação do vídeo, para evitar dar espaço à repercussão do episódio.
A notícia sobre a tal reunião, ocorrida em 22 de abril, mereceu no SBT uma edição de sete minutos, apenas mostrando Bolsonaro nos trechos mais aplaudidos por seus apoiadores, que foi exibida no início e no final do Programa Silvio Santos, no domingo, 24 de maio.
É preciso lembrar ainda que se a concessão já não é ato de uma canetada, a distribuição de verba publicitária do governo é iniciativa que, salvo contestações de terceiros, cabe unicamente a Bolsonaro. Nesse ponto, ele tem demonstrado sua gratidão a Record e SBT, que poupam o presidente em seus noticiários, na mesma medida em que exibe sua guerra contra a Globo.
Embora a Globo tenha mais que a soma de audiência das outras duas redes, a gestão Bolsonaro ampliou a verba publicitária destinada a Record e SBT, e reduziu os anúncios do governo na Globo, algo já contestado pelo TCU -Tribunal de Contas da União.
A distribuição da verba oficial é definida pela Secom, Secretaria de Comunicação, conduzida por Fábio Wajngarten, dono de empresa que tem SBT e Record como clientes, e abrigada sob o ministério conduzido pelo genro do Homem do Baú.